quarta-feira, 3 de março de 2010

"Quando o Mar chamou Alayda" (conto), de Rogério S. Farias

Em sua casa, na praia ao sul de Maremontes, Alayda cantava, tocando seu piano de forma exuberante. Como cantora e pianista, era soberba, magistral.

Era poetisa, também. E pintora. E amante dos prazeres proibidos do sexo. Vivia para a arte e para a volúpia.

No auge de sua loucura erótica, levou um pobre poeta do interior de Maremontes, Rúbio Perez, a ficar escravo de seus beijos ardentes.

Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio com um rude e sensual pescador de nome Antero. Foi uma paixão efêmera como um temporal de verão.

Não houvera amor, apenas desejos fortuitos de lascívia e lubricidade.

Desgostoso ao saber da traição de Alayda, o tristonho Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar furioso e profundo de Maremontes. Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.

Alayda, ao saber do acontecido, ficou deprimida. Passou a beber. Lia os versos de Rúbio todas as noites, em voz alta, sob o olhar desconfiado da criadagem. Olhava para o mar bravio, cintilando com as luzes da grande lua cheia refletida em sua superfície rugosa.

Pouco a pouco ela foi enlouquecendo, madrugadas inteiras musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio, com intervalos onde bebia vinho para esquecer seu remorso atroz e contumaz.

O arrependimento por ter magoado e traído o pobre Rúbio era como um punhal de fogo em seu peito. Ela queria morrer, morrer e mais nada.

Até que, com as dores da alma, vieram os primeiros lampejos negros de loucura. A dor do pecado a consumia como uma chama selvagem, queimando-lhe a alma toda. E essa dor refletira-se em seu corpo; outrora ela fora bela e formosa, mas agora as olheiras, as rugas, a vida desregrada em loucuras de sexo pecaminoso com outros pescadores, tudo a tornava feia e repulsiva como uma rameira de pior jaez.

Numa madrugada fria e cinzenta como uma tumba negra do Inferno, ela ouviu aquele chamado distante, parecendo vindo do mar, parecendo ser o próprio mar ou uma entidade humana acrescentada ao mesmo...

- Alayda!... Alayda!... Alayda, querida!... Meu amor!...

E foram noites e noites frias onde o mar parecia chamar Alayda, enlouquecida, bêbada, arrependida. Ela não mais dormia, a vida tornara-se um fardo insuportável, uma prisão irremediável, um veneno lento de efeitos pungentes.

Certa noite em que as brumas densas envolviam a praia como que fantasmas oriundos das fossas negras do Inferno, Alayda buscou aquela voz gutural e profunda, proveniente do mar revoltoso da cidade costeira de Maremontes.

Deixando marcas de seus pés na areia branca, Alayda, com seu longo e sensual vestido branco e seus cabelos dourados e desgrenhados balançando ao sabor da pequena brisa que também fazia rodopiar lentamente as névoas, foi caminhando, como que indo ao encontro da estranha voz que vinha do mar, a voz que, agora, ela percebia, tinha um timbre familiar, fúnebre; lembrava, vagamente, a doce voz de Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.

- Alayda!... Alayda!... Alayda, meu amor!... Venha!
Venha, Alaydaaaaa! Venha morrer comigo, Alaydaaaa!...

E Alayda, tremendo de frio, o juízo perdido para sempre, caminhou lentamente entre as sombras da noite, caminhou para o mar, adentrando-o e desaparecendo em suas águas gélidas e turbulentas.

E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar de Maremontes, naquela noite sombria, onde as névoas bailavam ao luar. O mar chamara Alayda para a morte!


* * *

Pela manhã, a criadagem da casa sentiu a falta de Alayda. Ela costumava tocar piano todas as manhãs. Num instante todos sabiam do desaparecimento de Alayda.

Os pescadores, entre eles o rude Antero, ex-amante de Alayda, viram as pegadas na areia. Antero sabia: aquelas marcas delicadas de um pequeno pé, só podiam ser de Alayda; além disso, ainda pairava no ar aquele perfume que só ela usava, um perfume de amor selvagem e libidinoso.

Não havia dúvida para o povo de Maremontes, ela morrera no mar. Suicidara-se. Morrera. Como morrem todos aqueles que amam a poesia tristonha do amor e os poetas fracassados nesta vida estranha e ruim.

Fim




Peculiaridades negativas:
(ocorrências verificadas na superfície do texto)

a) substantivo próprio Alayda:
23 vezes

b) verbo ser:
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
Era poetisa, também.
Foi uma paixão efêmera como um temporal de verão.
Pouco a pouco ela foi enlouquecendo
era como um punhal de fogo em seu peito
outrora ela fora bela e formosa
E foram noites e noites frias
foi caminhando
E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar

c) adjetivo estranha:
estranha
estranha


d) adjetivo sombria:
sombria
sombrias

e) substantivo piano:
tocando seu piano de forma exuberante
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio
Ela costumava tocar piano todas as manhãs.

f) substantivo prazer:
E amante dos prazeres proibidos do sexo.
Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio.

g) substantivo mar:
13 vezes

h) verbo morrer:
8 vezes

i) lugares-comuns:
beijos ardentes
fardo insuportável
madrugada fria e cinzenta
voz gutural
noites e noites frias
paixão efêmera
tremendo de frio

j) dois sinônimos contíguos e semelhante valor semântico:
lascívia
lubricidade

k) estruturas sintáticas paralelas:
Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.
Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.
os poetas fracassados nesta vida



Virtudes do texto
a) comparação original ("punhal de fogo"):
era como um punhal de fogo em seu peito

b) Assonância (repetição cíclica de sons vocálicos semelhantes):
Já no título ( "Quando o Mar chamou Alayda" ), constatamos a presença contínua do fonema "a", que possibilita a percepção de uma beleza extra.

c) Aliteração (figura de linguagem que privilegia a reprodução de idênticos sons consonantais) - ocorre ainda aí uma discreta (porém melíflua) aliteração - no caso, a letra "m": Mar chamou.

d) regência de precipitar(-se):
“Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar.”

Não existe a regência “precipitar-se a”, conforme verificamos no Aurélio e no Houaiss. A regência desse verbo abrange, segundo eles, as seguintes preposições:
De: Precipitou-se do telhado, fugindo dos ratos furiosos.
Em: Precipitou-se nas águas revoltas.
“Precipitou-se ela mesma na miséria.” (sentido figurado) (Houaiss)
Com: “Os acontecimentos precipitaram-se, com as ocorrências políticas.” (Aurélio)
Contra: O boi precipitou-se contra a cerca de arame farpado.
Para: Precipitou-se para fora da sala em chamas.

Atuando como transitivo direto, citamos:
Aquele gesto precipitou os acontecimentos.

E atuando como intransitivo e em sentido figurado:
Precipitou-se e não foi feliz.
Os corredores precipitaram-se uns após os outros.

Todavia, não vemos a menor oposição gramatical quanto ao encaixe (bem oportuno, aliás) da preposição “a” na oração citada e, em consequência, no corpus da própria Língua Portuguesa. (Isto numa perspectiva sincrônica, e partindo da lógica do léxico, perpetuamente auto-renovante.)

e) Narrador. Personagens
O narrador pode ser, segundo Santos & Gomes (1):
– Implícito (pressuposto pelo texto, em terceira pessoa)
– Explícito (diz eu, em primeira pessoa)
– Participante da história (como personagem, ser o protagonista, adjuvante ou testemunha)
– Não participante da história (não toma parte dos acontecimentos, apenas narra a história).

No caso, o narrador é implícito, onisciente (sabe de tudo e tudo conta - um tudo evidentemente limitado, porque dentro das fronteiras formais do tipo textual "conto").

Os personagens injustiçados pelos homens ou perseguidos pelo destino (ou ambas as coisas) conseguem a nossa imediata simpatia. Essa identificação instintiva ocorre nos livros, de onde saltam envoltos pelo nosso prazer, nosso ódio, nossa dor ou nossa alegria.
A existência de alguns personagens bons no leito narrativo ameniza a secura, o sarcasmo, o desprezo e os maus tratos da habitual legião de seres vis.


“Ela queria morrer, morrer e mais nada.”
Frase de efeito catalisante, enfático, transmitindo com certeza a decisão da personagem. A reiteração do verbo, o impacto final e o efeito real são auxiliados pelo ritmo trabalhado, bem distribuído: ria – rer – rer – na.



Conclusões
a) Falando dos esforços literários para atingir um patamar de qualidade, Calvino (7) assim se expressa:
"O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado.
Estou convencido de que escrever prosa em nada difere de escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável." (pág. 61)

E Santos (5) revela as latentes sutilezas da linguagem artística, afetas à Teoria do Texto, quando faz o elogio da profª Ingedore:
"Com Ingedore Koch, passamos a entender a trajetória e os grandes temas da Linguística Textual, descobrimos que linguagem é interação e texto é tecido, teia, iceberg cujos segredos devem ser desvendados."

Já Platão & Fiorin (6) assim se referem à intertextualidade, esse fenômeno às vezesquase imperceptível, sempre presente num enunciado:
“Os textos têm a propriedade intrínseca de se constituir a partir de outros textos. Por isso, todos eles são atravessados, ocupados, habitados pelo discurso do outro. Por conseguinte, a linguagem é fundamentalmente heterogênea. (pág. 29)


b) Título. Nomes. Finalizando
O chamamento, o apelo, o estímulo, a força sísmica que advém desse título nos conduz prisioneiros ao conto: "O que ocorrerá em seguida?!" - perguntamo-nos inconscientemente.

E as respostas se mostram na narrativa,
administrada com a habitual tensão e lirismo pelo escritor - soluções que descobrimos e das quais nos apropriamos com mais sofreguidão, mais ânsia, angústia e serenidade, pois que apresentadas por um título que já introduz a trama, o enredo, a história.

E o nome “Alayda” passa-nos a ideia de uma personagem meio nobre (lady), meio musical (alaúde). Polimorfa, múltipla, plural.
De Grande Sertão: Veredas lembramos um nome celebrizado em estudos de grossos tomos e magros artigos de crítica literária: Diadorim. Lembra este nome: adorar, dia, dourar, ouro.

“Quando o Mar chamou Alayda” equivale, em expectativa narrante, ao clássico “Era uma vez, há muitos e muitos anos...”

Convivem enfim no conto a piedade, a esperança, a saudade, o sonho e a inocência, lado a lado com a indiferença, a vaidade, o drama, a tragédia, a miséria e a opulência...



Bibliografia:
1 - A Cena Escolar Brasileira (Módulo V - Curso de Pós-Graduação). Coord.: Leonor Werneck dos Santos e Regina Gomes. 2008.

2 - A personagem, de Beth Brait. 8ª ed. SP, Ática, 2006.

3 - A procura de Stevatas e outras histórias, de
Rogério Silvério de Farias.

4 - Dicionário Aurélio, de Aurélio B. Holanda. 2ª ed. Nova Fronteira, RJ, 1996.

5 – Dicionário Houaiss Eletrônico, de Antonio Houaiss.

6 - Homenagem a Ingedore Villaça Koch, deLeonor Werneck dos Santos (UFRJ).
Fonte: www.filologia.org.br

7 - Lições de texto: leitura e redação de, Francisco Platão Savioli e, José Luiz Fiorin. Editora Ática, SP, 2003.

8 - Minigramática, de Ernani Terra (supervisão de José de Nicola). Editora Scipione, SP, 2002.

9 - Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino. Tradução de Ivo Barroso. Companhia das Letras, RJ, 1990.

Nenhum comentário: