domingo, 14 de março de 2010

Lei 10.639/03 (dispõe sobre a História e Cultura Afro-Brasileiras)

       Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

       O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

       Art. 1º - A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos:

"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1° - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2° - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como 'Dia Nacional da Consciência Negra'."

       Art. 2° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.       Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115 o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Buarque
Fonte: www.planalto.gov.br   
Acessado em 02/11/2007

"Poesia Africana de Língua Portuguesa", de José F. Costa

Ensaio escrito por José Francisco Costa, pesquisador da Bristol Community College, em 05/04/2006.


Em primeiro lugar gostaria de me situar perante o título/sugestão que motivou o presente exercício escrito. A lista acima sugerida apresenta, desde logo, uma valiosa pista para demarcarmos os parâmetros da análise que me proponho. Com efeito, todos estes autores são, a meu ver, o que de mais representativo se pode encontrar na literatura africana de expressão portuguesa. E isto porque cada um dos poetas é, no seu lugar e tempo, um marco de referência obrigatória para o estudo e análise da caminhada que, so-bretudo a partir da terceira década deste finado século, foi encetada pela comunidade de escritores que hoje têm os seus nomes no corpus da literatura do país a que pertencem.


Utilizei a palavra "caminhada" porque o seu sentido metafórico é mais forte do que o simples "caminho" conotado com algo de passivo, de efeito logicamente ligado a uma causa que o produz; enquanto "caminhada" conota a quebra de barreiras, a abolição de antigos códigos e a introdução de outros, a renovação de mentalidades, a assunção de risco. Enfim "caminhada" é um lexema cuja semântica se relaciona com o esforço de produzir e criar a novidade. Jorge Barbosa e Corsino Fortes, Francisco José Tenreiro, Agostinho Neto e Arlindo Barbeitos, José Craveirinha e Luís Carlos Patraquim, são os que, em determinada altura , se "desviaram" do caminho de uma lite-ratura colonial e colonizante. Foram eles que lançaram a pedra no charco de uma criação literária que parecia estagnada pelo torpor do lusotropicalismo. Foram sobretudo autores como Jorge Barbosa, Corsino Fortes e Agostinho Neto que iniciaram a marcha para a libertação definitiva do logos que, em todos os casos, foi arma fundamental na luta pela própria independência política.


Se falamos de "caminhada", entendemos obviamente uma progressão em todos os sentidos da criação literária. É por isso que, ao referirmos estes poetas, entendemos que é possível falar em evolução aos níveis ideológico, temático e formal das literaturas de que são expoentes.


E cabe aqui referir, embora muito ao de leve, a problemática relacionada com o aparecimento das literaturas de expressão portuguesa em África. Elas são, por um lado, o resultado de um longo processo histórico de quase quinhentos anos de assimilação de parte a parte, com tudo que há de positivo e negativo em tal processo; por outro lado, estas literaturas são produto (a meu ver, ainda não acabado) de uma conciencialização que se iniciou nos anos 40 e 50 deste século com chamadas "elites lusófonas" 1. Mais do que isso acontece que o escritor africano vive, até à data da independência, no meio de duas realidades a que ele não pode ficar alheio: a sociedade colonial européia e a sociedade africana; os seus escritos são, por isso, o resultado dessa tensão existente entre os dois mundos. Acrescente-se que o escritor africano-e apesar dos esforços dos governos de Salazar e Caetano em sentido contrário- recebe constantemente as influências do exterior, pelo que a sua escrita, na forma e no conteúdo, revela o contacto com movimentos e correntes literárias da Europa e da América.


Pergunta-se se será possível periodizar tal processo de modo a que , num quadro único de esquema geral, caibam todos os escritores de todos os países. Manuel Ferreira oferece-nos um esquema em que apresenta a emergência da literatura africana, sobretudo no que toca à poesia, ligada ao que ela considera como "os momentos/etapas do produtor do texto". No primeiro momento, o escritor está em estado quase absoluto de alienação. Os seus textos poderiam ter sido produzidos em qualquer outra parte do mundo: é o menosprezo e a alienação cultural. Ao segundo momento corresponde a fase em que o escritor ganha a percepção da realidade. O seu discurso revela influência do meio, bem como os primeiros sinais de sentimento nacional: é a dor de ser negro; o negrismo e o indigenismo. O terceiro momento é aquele em que o escritor adquire a consciênciade colonizado. Liberta-se. A prática literária enraíza-se no meio sócio-cultural e geográfico: é a desalienação e o discurso da revolta. O quarto momento corresponde à fase histórica da independência nacional, quando se dá a recontituição da individualidade plena do escritor africano: é a fase da produção do texto em liberdade, da criatividade. Aparecimento de outros topoi, como o mestiço, a identificação com África. O orgulho conquistado.


Estes momentos não são rígidos nem inflexíveis. Um escritor muitas vezes "flutua" entre dois ou três momentos. No seu espaço ontológico e de criatividade poética movem-se valores do colonizador que são dados adquiridos; funcionam valores culturais de origem; e há sempre a consciência de valores que se perderam e é necessário ressuscitar. Para se entender a literatura africana, é necessário ter em conta tal perspectiva dinâmica, como bem o afirma Manuel Ferreira: "No trânsito da dor de ser negro, em Costa Alegre, para o consciente orgulho de ser preto, em José Craveirinha, se edifica, no espaço lírico, o discurso da descolonização mental e se organoza o corpus da libertação racial e cultural" 2.


Uma perspectiva mais historicista é a de Patrick Chabal, que, quando se refere ao relacionamento do escritor africano com o enorme campo de influência que constitui a oralidade (que está antes de tudo e em quase tudo o que de melhor se tem escrito em África), propõe quatro fases abrangentes da literatura africana. A primeira fase é a da assimilação. Os escritores africanos, quando lhes foi dada a oportunidade de produzir esteticamente, copiam e imitam os mestres, sobretudo europeus,pelo que, como diz Chabal, " Na história de cada colônia existe um número de escritores que escreveu como os europeus" 3. A segunda fase é a da resistência. Nesta fase o escritor africano assume a responsabilidade de construtor, arauto e defensor da cultura africana. È a fase do rompimento com os moldes europeus e conciencialização definitiva de que o "homo" africano é tão "sapiens" como o europeu. Esta fase coincide com a da negritude lusófona, que, como sabemos, tomou caminhos algo diferentes da negritude de Cesaire, Damas e Senghor. A terceira fase da literatura africana coincide com o tempo da afirmação do escritor africano como tal. Esta fase verifica-se depois da independência. O escritor procura, antes de mais, marcar o seu lugar na sociedade. Mais do que praticar "o exorcismo do imperialismo cultural", o escritor africano preocupa-se com "definir a sua posição nas sociedades pós-coloniais em que vive" 4. A quarta fase que é a da actualidade, é a fase da consolidação do trabalho que se fez, em termos literários; é a fase em que os escritores procuram traçar os novos rumos para o futuro da literatura adentro das coordenadas de cada país, ao mesmo tempo que se esforçam por garantir, para essas literaturas nacionais, o lugar que lhes compete no corpus literário universal.


Se quisermos ter uma visão de conjunto da literatura africana, torna-se necessário ter em linha de conta estas fases da produção do texto, mas também os grandes momentos de ruptura com os códigos estabelecidos. A crítica e os historiadores estão basicamente de acordo que tais momentos poderão ser compendiados tendo como limites a seguinte periodização, que, por exemplo, nos oferece Manuel Ferreira. Diz este autor que "[...], os fundamentos irrecusáveis de uma literatura africana de expressão portuguesa vão definir-se com precisão, deste modo: a)- em Cabo Verde a partir da revista Claridade (1936-1960); b)- em S. Tomé e Príncipe com o livro de poemas Ilha de Nome Santo (1943), Francisco José Tenreiro; c)- em Angola com a revista Mensagem (1951-1952); d)- em Moçambique com a revista Msaho (1952); d (sic) - na Guiné-Bissau com a antologia Mantenhas para quem luta! 1977.5


Postas essa consideração de caráter genérico, gostaria de acrescentar algo que me parece de extrema importância para a leitura avisada das obras de literatura africana de expressão portuguesa. Penso que, ao estudar e ler obras dos escritores africanos, devemos ter presentes coordenadas que respeitam uma compreensão de tipo diacrónico desta literatura.Devemos ter em conta ,em primeiro lugar,as dificuldades do sujeito poético em se encontrar com seu universo africano. Devemos ter presente que muita da produção literária é o reflexo do esforço de procura de identidade cultural e a tomada progressiva de uma consciência nacional. Muita desta literatura é sintomática de uma verificação dolorosa de que a terra e os homens são dominados por estranhos. Também é necessário entender que, em quase todos os autores (para não dizer, em todos eles), é sempre possível detectar-se o momento poético da agressividade, que, no entanto, é continuamente acompanhado pela corrente subterrânea da esperança na mudança - que acabou por verificar-se. E depois desse mudança, é evidente que mestres como Barbosa, Lopes, Craveirinha, Tenreiro e Neto vão dando lugar a um Patraquim, Mia Couto, Barbeitos, e mais gente, com a nova visão de uma África que se renova. Aí vai, em traços muito largos, o que cada um dos autores propostos representa na literatura do seu próprio país.


CABO VERDE
Todos sabemos que há um conjunto de factores de ordem geo-política, econômica e social que levou a que Cabo Verde, desde muito cedo, ficasse praticamente entregue a si próprio em termos de homogenização racial e cultural. O impacto do colonialismo não é tão drástico, impulsivo e dramático como nas outras regiões. Embora reconhecendo o risco de tal afirmação, diria que Portugal, como potência colonizadora, e com todas as expectativas do regime, acabou por criar algumas condições necessárias para o aparecimento da literatura caboverdiana. Desde muito cedo que a terra, bem como os centros de controle e administração, passam para as mãos de. O grupo uma burguesia nascida em Cabo Verde, formada maioritariamente por mestiços.


Entre 1920 e 1930 já existe uma elite muito consciente dos problemas que afectam as ilhas. Esta gente está sobretudo concentrada em S. Nicolau, S. Antão e S. Vicente, e muitos são comerciantes, professores estudantes e jornalistas que estão em contacto com as correntes e movimentos literários de Portugal, como o modernismo e o neorealismo. Mas é sobretudo o modernismo brasileiro que influencia esta geração que se familiariza com Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, e poetas como Jorge de Lima, Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, e os sociólogos como Gilberto Freyre. A partir, sobretudo, dessa altura os escritores de Cabo Verde começam a tomar uma consciência cada vez mais nítida da realidade das ilhas, a romper com os modelos de tipo europeu. A atenção é focada cada vez mais na terra, no ambiente sócio-económico e no povo das ilhas.


O grande passo para a viragem total de temática da literatura produzida em Cabo Verde é dado, em 1936, por um grupo de intelectuais que lança a revista Claridade. O grupo, que para a história literária passou a ser conhecido por claridosos, integra, para além de outros, Baltazar Lopes, Manuel Lopes e Jorge Barbosa.


As linhas mestras dos movimentos dos claridosos estão praticamente condensadas na obra daquele que também é o seu maior responsável - Jorge Barbosa. A preocupação fundamental da sua poesia é revelar as situações com que diariamente se defronta o cabo-verdiano: a fome, a miséria, a falta de esperança no dia de amanhã, as secas e os seus efeitos devastadores. Os grandes tópicos são o lugar, o ambiente sócio-económico e o povo; e todos em relação constante com o mar. O mar é o elemento provocador do aparecimento de outras duas realidades soberbamente tratadas na poética barbosiana: a viagem e o sonho de encontrar uma terra prometida.


A ilha, o mar, a viagem e o sonho são os signos de maior densidade na poesia de Jorge Barbosa. Toda essa temática se distribui pelas suas três obras: Arquipélago (1935), Ambiente (1941) e Caderno de um Ilhéu (1956). Mas, quanto a mim, é em Ambiente que Jorge Barbosa se define como poeta inovador, que dá à sua poesia uma tonalidade dramática nova, trazida "pela intimidade, a denúncia, a epopéia do homem isleno vivendo no drama de <>" 6. Não resisto à tentação de citar aqui um poema que, quanto a mim, é revelador da dualidade em que Jorge Barbosa coloca os referentes de quase todos os seus poemas. Há sempre um "eu" em constante tensão com um ambiente exterior. Repare-se no poema Prisão:


Pobre do que ficou na cadeia
de olhar resignado,
a ver das grades
quem passa na rua!
pobre de mim que fiquei detido
também na Ilha tão desolada
rodeada de Mar!...
...as grades também da minha prisão! 7


Este poema é paradigmático quando se procura organizar uma amostragem comparativa da poesia de Cabo Verde. É que toda poesia dos claridosos, se por um lado rompeu com os diques das normas temáticas do colonialismo, não se terá libertado completamente de um certo miserabilismo herdado do neo-realismo português. Esta poesia é toda ela virada para o homem caboverdiano e o mundo que o rodeia; no entanto não aponta grandes soluções. É pois, uma poesia de descrição, profundamente lírica, intimista, mais ainda falha de coragem para apontar outra solução ao homem caboverdiano que não seja a evasão do mundo que lhe pertence. É por isso que os claridosos, e Jorge Barbosa, evidentemente, são freqüentemente criticados pelo carácter "evasionista" e "escapista" da sua poesia.


A geração da Claridade lançou os alicerces da nova poesia que depois é continuada pelos escritores que colaboram em outras duas publicações, a Certeza (1944) e o Suplemento Cultural (1958). Nas duas revistas colaboraram poetas como António Nunes, Aguinaldo Fonseca, Gabriel Mariano, Onésimo Silveira (um dos primeiros a utilizar o crioulo de parceria com o português, no seu livro Hora Grande, 1962) e Ovídio Martins, que combate abertamente o evasionismo dos claridosos. Apesar de tudo a geração da Claridade influenciou, e continua a influenciar, grande parte da produção poética e ficcionista de Cabo Verde.


O salto qualitativo e a ruptura com a influência dos claridosos devem-se a dois escritores que chegaram a participar na revista Claridade. Estou a referir-me a João Varela (aliás João Vário, aliás Timótio Tio Tiofe) que publicou em 1975, o primeiro livro de Notcha, e Corsino Fortes, autor de dois importantes trabalhos poéticos, Pão & Fonema (1975) e Árvore & Tambor (1985). É sobretudo Corsino Fortes que provoca o maior desvio de conteúdo temático e formal. O livro Pão & Fonema deixa perceber a intenção do autor em reescrever a história do povo em termos de epopéia. O livro abre com uma Proposição que constitui, por si só, uma demarcação da poesia de tipo estático dos claridosos. Repare-se na primeira estrofe:


Ano a ano crânio a crânio
Rostos contornam o olho da ilha
com poços de pedra
abertos no olho da cabra 8


Esta cadência ritmada do esforço humano marca o compasso da epopéia que se pretende escrever, intenção que o autor condensa na epígrafe da autoria de Pablo Neruda: "Aqui nadie se queda inmóvel./Mi pueblo es movimiento./mi pátria es um camino" 9. O poema desenrola-se depois em dois cantos que justificam o título.


Este livro de Corsino Fortes é, quanto a mim, o desenvolvimento e expansão de uma metáfora que se inicia com o título. O povo tomou conta da sua terra (o Pão) e do seu destino (a fala que dá nome às coisas, que indica posse). A utilização do crioulo em muitos poemas é intencional, uma vez que fala, anterior à escrita, é o grande sinal da liberdade que se tornou patrimônio, tal como a terra. Daqui o subtítulo do canto primeiro - Tchon de Pove Tchon de Pedra; daqui também os subtítulos de outros dois cantos - Mar & Matrimónio e Pão & Matrimónio.


É evidente que toda problemática de raiz caboverdiana está presente na obra de Corsino Fortes. Ao contrário dos claridosos, a nova poesia é uma expressão artística cuja formulação sugere, reflecte e intervém na dinâmica do real. A grande diferença no entanto, reside no facto de que este autor, para além de criar uma nova dinâmica de ralações entre o sujeito e o objecto poético, colocar toda a problemática caboverdiana num contexto muito mais vasto que é o da África. Cabo Verde, com sua especificidade, que é o isolamento de arquipélago, participa na viagem de construção da África de rosto e corpo renovado:


Dos seios da ilha
ao corpo da África
O mar é ventre
E umbigo maduro
E o arquipélago cresce 10





SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE
Em termos quantitativos, a produção poética de São Tomé e Príncipe corresponde às suas dimensões físicas, se compararmos com o que se passa nos outros países. A literatura deste pequeno país de duas ilhas no noroeste da costa africana é ainda pouco representativa no contexto das literaturas africanas de expressão portuguesa. No entanto, e qualquer que seja o futuro da sua produção poética, São Tomé e Príncipe tem assegurada a presença na panorâmica histórica da literatura africana. Com efeito, Francisco José Tenreiro, nascido em São Tomé, em 1921, é um dos marcos da poesia africana de expressão portuguesa.



Sobre outros poetas, valerá a pena mencionar um dos precursores da negritude lusófona, Francisco da Costa Alegre, nascido em 1864. A sua única obra, Versos, foi editada postumamente, em 1916. Costa Alegre é um dos primeiros poetas africanos que se exprime em língua portuguesa e que tem a consciência da sua cor 11. Ele não articula uma resposta à injustiça social que deixa transparecer em alguns dos seus versos, pelo que a sua poesia se parece mais com um queixume sobre a sua situação de africano de cor: "A minha cor é negra,/Indica luto e pena;/(...)Todo eu sou um defeito,/Sucumbo sem esperanças." Estes e outros lamentos são a tónica de sua poesia, que, no entanto, significa um despertar para a cor, um dos passos importantes para uma tomada de consciência nacional que a poesia africana toma em determinada altura, mas que se segue ao que Manuel Ferreira e outros críticos identificam como a "alienação racial".



Devemos referir também a poetisa Alda do Espírito Santo que figura em todas as antologias de poesia africana. A sua poesia, que tem também a diferença racial e a exploração colonial como pano de fundo, caracteriza-se por uma grande dose de combatividade e panfletarismo. No entanto, no seu único livro publicado até à data, É Nosso o Solo Sagrado da Terra: Poesia de protesto e luta, encontramos também os poemas de grande profundidade lírica, que descrevem com traços de verdadeira sensibilidade artística, a vida dos habitantes de São Tomé. Outros poetas, como Tomaz Medeiros, Maria Manuela Margarido, Marcelo da Veiga e Carlos do Espírito Santo, mantêm uma linha de continuidade em que a temática de fundo é a luta contra o colonialismo, a exploração dos negros nas plantações, a consciência da diferença que a cor provoca, e a alienação.



Como já me referi, o expoente da poesia sãotomense, e da poesia africana, é Francisco José Tenreiro. Duas razões fundamentais para esta facto. A primeira é uma razão que se reveste de carácter histórico de muita importância. Francisco José Tenreiro foi, de parceria com outro importante nome da literatura de Angola (Mário Pinto de Andrade), o autor do célebre Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, lançado em Lisboa, em 1953. A publicação, com uma introdução de Mário Pinto de Andrade, é uma pequena antologia de poetas de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe e ainda um poema de Nicolás Guillén, a quem o caderno é dedicado. Tem como objectivo fundamental uma reflexão sobre o que devia entender por negritude na África sob dominação portuguesa. O último período da introdução é bem explícito com relação ao propósito da publicação do caderno, que se destina "fundamentalmente aos que sabem encontrar-se reflectidos nesta poesia, e aos que, compreendendo a hora presente de formação de um novo humanismo à escala universal, entendem que os negros exercitam também os seus timbres particulares para cantar a grande sinfonia humana." 12



A segunda razão por que Francisco José Tenreiro é um marco de máxima importância na literatura africana vem resumida na introdução atrás citada. As palavras do poeta angolano sintetizam, a meu ver, o conteúdo temático e formal da poesia de Tenreiro. É por tal motivo que me permito terminar a referência ao grande da negritude em português com as palavras de Mário Pinto de Andrade: "Quem pela primeira vez exprimiu a <> em língua portuguesa foi sem sombra de dúvida Francisco José Tenreiro no seu livro Ilha de Nome Santo, datado de 1942. Devemos assinalar que ele encontrou por si, individualmente, as formas mais autênticas de expressão subjectiva e objectiva da <>. A Ilha de Nome Santo aparece assim como um feliz encontro dos temas da sua terra de origem (S. Tomé) e ainda como exaltação do homem negro de todo o mundo". 13



A obra poética de Tenreiro, particularmente Ilha de Nome Santo, foi desde sempre uma leitura obrigatória de todos quantos participaram dos movimentos sociais, políticos e literários, sobretudo a partir da década de 50. Tais movimentos foram-se a partir de organizações como a Casa dos Estudantes do Império e o Centro de Estudos Africanos, em Lisboa, de que Tenreiro foi um dos fundadores, em 1951. Em tais organizações militou a maioria dos intelectuais cujas obras passaram a integrar o que de mais representativo existe na poesia e na ficção dos países africanos de expressão portuguesa. E é sobretudo a poesia desses autores que absorve, com maior grau de profundidade, a tonalidade de negritude existente na obra de Francisco José Tenreiro. Eu diria que Tenreiro serviu de charneira na moldagem da literatura africana; literatura esta que não constitui uma ruptura essencial com a cultura dominante de cinco séculos, mas segue, para utilizar a idéia de Frantz Fanon, num movimento dirigido que começa na assimilação e vai até à luta pela libertação. 14





ANGOLA
Como acontece com os outros países, a literatura de Angola também não nasce por método espontâneo. Vários são os antecedentes e os precursores que influenciam sobremaneira o carácter social, cultural e estético da literatura e da poesia, em particular. E não podemos nunca descurar, como factor de grande influência, a tradição da oralidade em África, quanto a mim, um dos antecedentes de maior responsabilidade. O peso da oralidade exerce-se em muita da obra poética africana, conferindo-lhe uma grande carga de "espiritualismo telúrico". 15 Podemos considerar a história da poesia de Angola em duas fases, sendo a primeira a da escrita colonial, e a segunda a da poesia moderna e nacional, que se inicia com a publicação da revista Mensagem, em 1951.



Mensagem marca, assim, o início da poesia moderna de Angola. Nesta revista participa uma pleiade de escritores que serão os responsáveis pela construção da literatura do novo país, nascido em 1975. No primeiro número de Mensagem colaboram, entre outros, Mário António, Agostinho Neto, Viriato da Cruz, Alda Lara, António Jacinto e Mário Pinto de Andrade. A publicação da revista , no dizer de Ana Mafalda Leite, "foi o resultado concreto da ambição desta nova geração de intelectuais de Angola de amplificar o movimento cultural iniciado nos anos 40 por Viriato da Cruz." 16



A produção poética angolana abrange três grandes períodos: de 1950 a 1970; o período de inovações - a década de 70; e a geração de 80. Vejamos, em resumo, em resumo, o que se passa em tais espaços de tempo.



As duas décadas de 1950 a 1970, marcam a fase da viragem para a conciencialização da problemática angolana, sobretudo em três grandes vertentes - a terra, a gente, e as suas origens. A temática dos escriotres da Mensagem gira à volta de tópicos que vão caracterizar a poética que existe até aos nossos dias: a valorização do homem negro africano e da sua cultura a sua capacidade de auto-determinação, a nação africana que se antevê como estado com autoridade e existência próprias. Muita da poesia é uma poesia de protesto anti-colonial, sem deixar de ser humanista e social. Agostinho Neto, Viriato Cruz e Mário António concentram muito da sua produção nesta temática.



O protesto anti-colonial toma uma feição muito mais directa e acutilante com a publicação da revista Certeza, em 1957. Esta revista, que se publica até 1961, revelou a existência de novos poetas, entre eles António Cardoso e Costa Andrade. Para além da contestação contra o colonialismo, desenvolve-se progressivamente uma temática que tem a ver com a evocação e a invocação da "mãe-pátria", da "terra grande" de África. Quase todos estes poetas tratam os temas da identidade, da fraternidade, da terra de Angola pátria de todos, negros, brancos e mestiços; de grande importância é também o tópico da alienação (sobretudo a que respeita ao estado de espírito do branco nascido e criado em Angola). Muita da poesia é também de carácter intimista, como é o caso da de Mário António.



Toda esta geração, utilizando recursos líricos e dramáticos, consegue criar uma poesia de fundo e cariz emocional. Através da poesia, descobre-se Angola, as suas origens, as suas tradições e mitos. A poesia adquire uma intencionalidade pedagógica e didáctica: com ela tenta-se recriar África e Angola, os valores ancestrais do homem africano e da sua terra, bem como ensinar esse mesmo homem a descobrir-se como individualidade. Esta poesia põe em prática a reposição da tradição oral, onde as próprias línguas nacionais ocupam um espaço importante. É, numa palavra, a poesia da "ango-lanidade".



O autor que representa melhor toda esta problemática é, sem dúvida, Agostinho Neto. A sua obra principal, Sagrada Esperança, é uma amostra valiosa não só da poesia de combate e contestação (sem ser panfletária, no entanto) mas também da poesia lírica e intimista, frequentemente modulada por uma religiosidade profunda. Agostinho Neto revela um grande humanismo, em que são evidentes o amor profundo pela vida e o conhecimento do sofrer humano, que amiúde obriga o poeta a utilização de um realismo feroz nos seus versos. Leia-se, como exemplos poemas "Velho Negro" 17 e "Civilização Ocidental" 18. Se dizemos que há poemas intimistas, tal não significa que o poeta se isole de habitat social e perde a referência fundamental da sua poesia. É constante a relação estabelecida por Neto entre o "eu" poético e o "outro"; um "eu" que é povoado pela humanidade e colocado no contexto da vida do seu povo. Veja-se, por exemplo, o poema "Confiança" 19 e o poema intitulado "Não me peças sorrisos" 20, que, a meu ver, é um dos melhores poemas de Agostinho Neto. Como o próprio título sugere, é evidente que a esperança é o tópico raiz e motor desta poesia. A esperança é o núcleo à volta do qual se constroem unidades poéticas de ralação dialéctica, como sejam a dor e o optismo, o sonho do poeta e o despertar do povo, a escravidão e a fé de transcender a opressão. Não podemos falar de sentimentalismo nesta poesia, mas sim de realismo poético. Eu chamaria atenção para o bom exemplo que é o poema "O choro de África" 21. Neste poema o poeta fala do "sintoma de África", que é uma combinatória dialéctica do sofrimento e da alegria que temperam, durante séculos, o homem africano, cujo destino é "criar amor com os olhos secos" 22. Como resultado desta temática, o estilo de Agostinho Neto revela grande contenção de forma, onde não há lugar para floreados poéticos e apelos fáceis à emoção, pese embora o seu cunho profundamente religioso.



Na década de 70 surgem três nomes que vão ser os principais responsáveis por uma mudança profunda na estética e na temática: David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho e Arlindo Barbeitos. Por um lado, procura-se maior rigor literário; por outro, e como consequência do anterior, evita-se propositadamente o panfletarismo. Entra-se também numa fase de maior experimentalismo. Estes autores tentam também reconciliar os temas políticos do passado com a procura de uma linguagem poética mais universal. Por exemplo, Ruy Duarte de Carvalho é autor de uma poesia que, ao lado de uma grande ambiência de oralidade e de um apontar para as consequências da guerra constitui também uma reflexão sobre o próprio discurso poético. É, no entanto, Arlindo Barbeitos a voz poética que melhor assume a viragem e a ruptura com a tradição da Mensagem.



Arlindo Barbeitos tem, até o momento, dois livros publicados: Angola Angolê Angolema (1976) e Nzoji (1979). Numa nota de introdução a Angola Angolê Angolema, Barbeitos traça as linhas mestras de sua poética. Assim, a sua poesia tenta ser uma reconciliação do homem com a sua condição; é um testemunho e um instrumento de libertação. A poesia tem como função primordial sugerir; ela é um compromisso entre a palavra e o silêncio. A outra função é a de relatar as formas culturais africanas e a vivência do au-tor. Arlindo Barbeitos afirma, a propósito, que "só é poesia se sugere, só tem expressão, só tem força, só é arte em forma de palavra, se simultaneamente retém e transcende a palavra" 23. Sobre as características da sua poesia, devemos dizer que ela é religiosa na medida em que nela se relata a experiência do ser humano que procura sempre a perfeição; por outro lado, há sempre o desejo de retorno à imanência, e a vontade de construir a irmandade universal. É, também, uma poesia que reflecte a dor, a guerra , a situação colonial. Em relação à língua, Arlindo Barbeitos tenta, e consegue, africanizar a língua colonial, numa tentativa continuada de repossuir todos os valores e tradições culturais do país.



A partir dos anos 80, surge uma nova geração de escritores cujo ecletismo é a característica mais marcante. Digna de nota é uma pequena antologia publicada em 1988, e intitulada no Caminho Doloroso das Coisas. Na introdução, o organizador da antologia deixa perceber o rumo de uma certa descontinuidade que a nova poesia angolana vai tomando: "São jovens, mas dentre eles há poetas que são artistas nos seus versos como carpinteiros nas tábuas. Tiveram que por (sic) verso sobre verso como quem constrói um muro. Analisaram se estava bem e tiraram sempre que não estivesse, sentados na esteira do Pessoa, [...] Jovens subscritores de uma auto-explicação metalinguística em que a ruptura formal não é tudo." 24

 

MOÇAMBIQUE
O processo de formação da literatura de Moçambique segue, mutatis mutandis, os mesmos trâmites que o de Angola. A formação, sobretudo nas zonas urbanas da Beira e Lourenço Marques (agora, Maputo), de uma elite de alguns negros, mestiços e brancos que se apoderou, aos poucos, dos canais e centros de administração e poder, é factor preponderante na emergência de uma literatura que passa pelas mesmas fases até aqui referidas para Angola: pré-colonial e colonial, afro-cêntrica e luso-tropicalista, nacional e pós-colonial.



Em termos de precursores desta literatura, há que referir Rui de Noronha, João Dias e Augusto Conrado. Entre eles merece realce Rui de Noronha, cujo livro de Sonetos foi publicado seis anos após a sua morte. A sua poesia reveste-se de algum pioneirismo, não pela forma, mas pelo conteúdo, uma vez que alguns dos sonetos mostram sensibilidade para a situação dos mestiços e negros, o que constitui a primeira chamada de atenção para os problemas resultantes do domínio colonial. Rui de Noronha representa também uma das primeiras tentativas de sistematizar, em termos poéticos, o legado da tradição oral africana. Sirva, como exemplo, o poema carregado de imagens do mundo mítico africano, intitulado "Quenguelequêze! ..." 25



Uma parte significativa da produção literária moçambicana deve-se aos poetas da "literatura européia" 26 ou seja, aqueles que, sendo brancos, centram toda, ou quase toda a sua temática nos problemas de Moçambique; foram eles que contribuíram decisivamente para a formação da identidade nacional moçambicana. Merecem especial realce: Alberto de Lacerda, Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Glória Sant'Anna, Sebastião Alba, Luis Carlos Patraquim e António Quadros. Alguns destes poetas escrevem poesia de carácter mais pessoal, enquanto os outros estão virados para o aspecto "social". Por exemplo, Reinaldo Ferreira e Rui Knopfli são poetas cuja obra se debruça fundamentalmente sobre a África, a "Mãe África" e o povo que vive e sofre as consequências do colonialismo. Por muita desta poesia perpassa também a centelha da esperança da libertação. São estes autores que contribuíram de um modo decisivo para a emergência da literatura da "moçambicanidade". Em muitos destes poetas podemos detectar a alienação em que se encontram perante a sociedade africana a que pertencem. Veja-se este exemplo de Rui Knopfli:



Europeu me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina européias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo
tem raiz de algum pensamento europeu,
É provável... Não.
É certo, mas africano sou. 27



A poesia política e de combate em Moçambique foi cultivada sobretudo por escritores que militavam na Frelimo. Entre eles, destaque para Marcelino dos Santos, Rui Nogar e Orlando Mendes. Este tipo de poesia preocupa-se sobretudo com comunicar uma mensagem de cunho político e, algumas vezes, partidário. Como literatura, e salvo raras excepções (como é o caso de Rui Nogar, com alguns belos poemas de carácter intimista, no seu livro Silêncio escancarado, de 1982), esta poesia é pouco ou nada inovadora.



Como nos outros países, surge também em Moçambique um número de escritores cuja obra poética é conscientemente produzida tendo em conta a factor da nacionalidade, anterior, como é evidente, à realidade do país que mais tarde se concretiza. São eles que forjam a consciência do que é ser moçambicano no contexto, primeiro da África e, depois, do mundo. Entre os principais autores deste tipo de poesia, encontram-se Noémia de Sousa, José Craveirinha, Jorge Viegas, Sebastião Alba, Mia Couto e Luis Carlos Patraquim.



A figura de maior destaque na poesia da moçambicanidade, e referência obrigatória em toda a literatura africana, é José Craveirinha. De facto, a poesia de Craveirinha engloba todas as fases ou etapas da poesia moçambicana, desde os anos 40 até praticamente aos nossos dias. Em Craveirinha vamos encontrar uma poesia tipo realista, uma poesia da negritude, cultural, social, política; há uma poesia de prisão; existe uma poesia carregada de marcas da tradição oral, bem como muito poema com grande pendor lírico e intimista.



Porque nos propomos analisar, numa outra oportunidade, a poética de Craveirinha, fique, ao menos, a referência à obra publicada deste autor: Cela 1 (1980), Xigubo(1980), Karingana Ua Karingana (1982) e Maria (1988). Uma leitura atenta leva-nos a perceber a diferença marcante entre cada uma destas obras de Craveirinha. Xigubo é um livro mais virado para a narratividade, para a descrição de elementos exteriores ao poeta. Neste livro, o poeta distancia-se do "eu" poético; ou, então, funciona como um narrador de estórias cuja voz é éco de um drama que se desenrola num universo (o de África) em que o poeta é participante. Pelo contrário, em Cela 1 e Maria, o "eu" poético identifica-se com o sujeito da narrativa. As últimas duas obras são um corolário da itinerância do poeta num clima de epopéia de que Xigubo e Karingana Ua Karingana são um registro. O poeta transfere-se da esfera de uma experiência colectivizante "narrada" em Xigubo, para uma escrita que individualiza a sua própria vivência "mimada" em Cela 1 e Maria.



Nesta obra de José Craveirinha, que não se pode considerar vasta, encontra-se o que de melhor pertence à poética africana dos países de expressão portuguesa.



Termino com uma breve referência à poesia do período pós-independência. Os poetas desta geração (é evidente que não me refiro aos "grandes" de antes de 1975, como Reinaldo Ferreira, Knopfli e Sebastião Alba desviaram-se da poesia de cariz colectivo, preferindo o individual e o intimista com que relatam a sua experiência pós-colonial. Entre estes poetas, é obrigatória a referência a Mia Couto, mas sobretudo a Luis Carlos Patraquim. São dois grandes construtores da palavra, preocupados com a linguagem poética. No caso de Mia Couto, penso que ele acaba por transferir todo o seu potencial poético para a ficção. Luis Carlos Patraquim revela influências de Craveirinha e Knopfli, sobretudo nos seus poemas de maior pendor pessoal e lírico, a sua poesia revela-se de certo modo, caótica, sensual e, por vezes, surrealista. Patraquim desenvolve uma poesia que, em parte, é inovadora, focalizada sobretudo no amor e no erotismo. Nota-se também uma grande preocupação de ligar a sua experiência ao mundo universal dos poetas para além das fronteiras africanas. Autor de três livros (Monção, A inadiável viagem e Vinte e tal Formulações e Uma Elegia Carnívora), Luis Carlos Patraquim representa a fusão entre as duas grandes vertentes da poesia moçambicana: a da moçambicanidade e a da linguagem lírica e sensual do "estar em Moçambique". 28



___________



1 - José Carlos Venâncio, Literatura e Poder na África Lusófona (Lisboa: ICALP,1992), pág.17



2 - Manuel Ferreira, O Discurso no Precurso Africano - I (Lisboa: Plátano, 1989) pág. 78



3 - Patrick Chabal, Vozes Moçambicanas - Literatura e Nacionalidade (Lisboa: Veja, 1994), pág.24



4 - Idem , Ibid.



5 - Manuel Ferreira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa - I (Lisboa: ICP, 1977) pág. 34



6 - Idem, pág. 38



7- Jorge Barbosa, Poesias - I ( Praia: 1989), pág. 113



8 - Corsino Fortes, Pão & Fonema (Lisboa: Sá da Costa, 19), Pág. 3



9 - Idem, pág. 1



10 - Corsino Fortes, "Raiz e Rosto", in Árvore & Tambor (Lisboa: Dom Quixote, 1986), pág. 36



11 - Alfredo Margarido, in Poetas de São Tomé e Príncipe (Lisboa: CEI).



12 - Mário Pinto de Andrade e Francisco José Tenreiro, Poesia de expressão Portuguesa (Linda-a-Velha: África,1982) pág. 52



13 - Idem, pág. 50



14 - Janheinz Jahn, Neo-African Literature - A History of Black Writing, (New York: Grove Press,1968, cf. Chapter 16 (pp. 227-283).



15 - Russell G. Hamilton, Literatura Africana, Literatura Necessária - I, Angola (Lisboa: Edições 70, 1981), pág. 95.



16 - Ana Mafalda Leite, Angola, in Patrick Chabal with others, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa (Evanston, Illinois: 1996), pág. 143. Tradução minha.



17 - Agostinho Neto, Sagrada Esperança (Lisboa: Sá da Costa, 1979), pág. 52



18 - Idem, pág. 57.



19 - Idem, pág. 67.



20 - Idem, pág. 70.



21- Idem, pág. 119.



22 – Idem, "criar", pág. 125.



23 - I. de Sá de Costa, "Conversando com Arlindo Barbeitos", in Arlindo Barbeitos, Angola Angolê Angolema (Lisboa: Sá da Costa, 1977), pág. 4



24 - J. A. S. Lopito Feijoó, No Caminho Doloroso das Coisas – Antologia ( Luanda: UEA,1988).



25 - A expressão é de Patrick Chabal, em The Postcolonial Literature of Lusophone Africa.



26 - Manuel Ferreira, 50 Poetas Africanos (Lisboa: Plátano editora, 1989), págs. 310-314.



27 - Idem, pág. 378.



28 - Patrick Chabal, The Postcolonial Literature of Lusophone Africa, pág. 65.




Acessado em 10/08/2007

quinta-feira, 11 de março de 2010

“O Arco e a Lira” de Octavio Paz.

INTRODUÇÃO
A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. Pão dos eleitos; alimento maldito. Isola; une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. Súplica ao vazio, diálogo com a ausência, é alimentada pelo tédio, pela angústia e pelo desespero. Oração, litania, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes. Nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem. Experiência, sentimento, emoção, intuição, pensamento não-dirigido. Filha do acaso; fruto do cálculo. Arte de falar em forma superior; linguagem primitiva. Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Idéia. Loucura, êxtase, logos. Regresso à infância, coito, nostalgia do paraíso, do inferno, do limbo. Jogo, trabalho, atividade ascética. Confissão. Experiência inata. Visão, música, símbolo. Analogia: o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos, da harmonia universal. Ensinamento, moral, exemplo, revelação, dança, diálogo, monólogo. Voz do povo, língua dos escolhidos, palavra do solitário. Pura e impura, sagrada e maldita, popular c minoritária, coletiva e pessoal, nua e vestida, falada, pintada, escrita, ostenta todas as faces, embora exista quem afirme que não tem nenhuma: o poema é uma máscara que oculta o vazio, bela prova da supérflua grandeza de toda obra humana!

Como não reconhecer em cada uma dessas fórmulas o poeta que as justifica e que, ao encarná-las, lhes dá vida? Expressões de algo vivido e padecido, não temos outro remédio senão aderirmos a elas - condenados a abandonar a primeira pela segunda e esta pela seguinte. Sua própria autenticidade mostra que a experiência que justifica cada um desses conceitos os transcende. Será preciso, portanto, interrogar os testemunhos diretos da experiência poética. A unidade da poesia só pode ser apreendida através do trato desnudo com o poema.

Um poema é uma obra. A poesia se polariza, se congrega c se isola num produto humano: quadro, canção, tragédia. O poético é poesia em estado amorfo; o poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente. É lícito perguntar ao poema pelo ser da poesia, se deixamos de concebê-lo como uma forma capaz de se encher com qualquer conteúdo. O poema não é uma forma literária, mas o lugar de encontro entre a poesia e o homem.

O poema é um organismo verbal que contém, suscita ou emite poesia. Forma e substância são a mesma coisa. Mal desviamos os olhos do poético para fixá-los no poema, aparece-nos a multiplicidade de formas que assume esse ser que pensávamos único. Como nos apoderarmos da poesia se cada poema se mostra como algo diferente e irredutível?

A forma mais alta da prosa é o discurso, no sentido estrito dessa palavra. No discurso as palavras aspiram a se constituir em significado unívoco. Esse trabalho implica reflexão e análise. Ao mesmo tempo introduz um ideal inatingível, já que a palavra se nega a ser mero conceito, significado sem outra coisa mais. Cada palavra – à parte suas propriedades físicas - encerra uma pluralidade de sentidos. Assim, a atividade do prosador se exerce contra a natureza própria da palavra.

A palavra, finalmente em liberdade, mostra todas as suas entranhas, todos os seus sentidos e alusões, como um fruto maduro ou como um foguete no momento de explodir no céu. O poeta põe em liberdade sua matéria. O prosador aprisiona-a.

O poema, sem deixar de ser palavra e história, transcende a história. Sob condição de examinar com mais atenção em que consiste esse ultrapassar a história, podemos concluir que a plural idade de poemas não nega, antes afirma, a unidade da poesia.

Cada poema é único. Em cada obra lateja, com maior ou menor intensidade, toda a poesia. Portanto, a leitura de um só poema nos revelará, com maior certeza do que qualquer investigação histórica ou filológica, o que é a poesia. Mas a experiência do poema - sua recriação através da leitura ou da recitação - também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogenia. Quase sempre a leitura se apresenta como a revelação de algo alheio à poesia propriamente dita.

Para alguns o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Cada leitor procura algo no poema. E não é insólito que o encontre: já o trazia dentro de si.

Todos já fomos crianças. Todos já amamos. O amor é um estado de reunião e participação aberto aos homens: no ato amoroso a consciência é como a onda que, vencido o obstáculo, antes de se desmanchar, ergue-se numa plenitude na qual tudo - forma e movimento, impulso para cima e força da gravidade - alcança um equilíbrio sem apoio, sustentado em si mesmo. Quietude do movimento. E do mesmo modo que através de um corpo amado entrevemos uma vida mais plena, mais vida que a vida, através do poema vislumbramos o raio fixo da poesia. Esse instante contém todos os instantes. Sem deixar de fluir, o tempo se detém, repleto de si.

Objeto magnético, secreto lugar de encontro de forças contrárias, graças ao poema podemos chegar à experiência poética. O poema é uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua disposição. No entanto, o poema não é senão isto: possibilidade, algo que só se anima ao contacto dc um leitor ou de um ouvinte. Há uma característica comum a todos os poemas, sem a qual nunca seriam poesia: a participação. Cada vez que o leitor revive realmente o poema, atinge um estado que podemos, na verdade, chamar de poético. A experiência pode adotar esta ou aquela forma, mas é sempre um ir além de si, um romper os muros temporais, para ser outro. Tal como a criação poética, a experiência do poema se dá na história, é história e, ao mesmo tempo, nega a história.

O poema é mediação: graças a ele, o tempo original, pai dos tempos, encarna-se num momento. A sucessão se converte em presente puro, manancial que se alimenta a si próprio e transmuta o homem. A leitura do poema mostra grande semelhança com a criação poética. O poeta cria imagens, poemas; o poema faz do leitor imagem, poesia.

E ainda guardamos viva a sensação de alguns minutos de tal maneira plenos que se transformaram em tempo transbordado, maré alta que rompeu os diques da sucessão temporal. Pois o poema é via de acesso ao tempo puro, imersão nas águas originais da existência. A poesia não é nada senão tempo, ritmo perpetuamente criador.

“O Arco e a Lira” de Octavio Paz. Tradução de Olga Savary. Ed. Nova Fronteira, RJ, 1982. (Coleção Logos)

quarta-feira, 3 de março de 2010

"Quando o Mar chamou Alayda" (conto), de Rogério S. Farias

Em sua casa, na praia ao sul de Maremontes, Alayda cantava, tocando seu piano de forma exuberante. Como cantora e pianista, era soberba, magistral.

Era poetisa, também. E pintora. E amante dos prazeres proibidos do sexo. Vivia para a arte e para a volúpia.

No auge de sua loucura erótica, levou um pobre poeta do interior de Maremontes, Rúbio Perez, a ficar escravo de seus beijos ardentes.

Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio com um rude e sensual pescador de nome Antero. Foi uma paixão efêmera como um temporal de verão.

Não houvera amor, apenas desejos fortuitos de lascívia e lubricidade.

Desgostoso ao saber da traição de Alayda, o tristonho Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar furioso e profundo de Maremontes. Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.

Alayda, ao saber do acontecido, ficou deprimida. Passou a beber. Lia os versos de Rúbio todas as noites, em voz alta, sob o olhar desconfiado da criadagem. Olhava para o mar bravio, cintilando com as luzes da grande lua cheia refletida em sua superfície rugosa.

Pouco a pouco ela foi enlouquecendo, madrugadas inteiras musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio, com intervalos onde bebia vinho para esquecer seu remorso atroz e contumaz.

O arrependimento por ter magoado e traído o pobre Rúbio era como um punhal de fogo em seu peito. Ela queria morrer, morrer e mais nada.

Até que, com as dores da alma, vieram os primeiros lampejos negros de loucura. A dor do pecado a consumia como uma chama selvagem, queimando-lhe a alma toda. E essa dor refletira-se em seu corpo; outrora ela fora bela e formosa, mas agora as olheiras, as rugas, a vida desregrada em loucuras de sexo pecaminoso com outros pescadores, tudo a tornava feia e repulsiva como uma rameira de pior jaez.

Numa madrugada fria e cinzenta como uma tumba negra do Inferno, ela ouviu aquele chamado distante, parecendo vindo do mar, parecendo ser o próprio mar ou uma entidade humana acrescentada ao mesmo...

- Alayda!... Alayda!... Alayda, querida!... Meu amor!...

E foram noites e noites frias onde o mar parecia chamar Alayda, enlouquecida, bêbada, arrependida. Ela não mais dormia, a vida tornara-se um fardo insuportável, uma prisão irremediável, um veneno lento de efeitos pungentes.

Certa noite em que as brumas densas envolviam a praia como que fantasmas oriundos das fossas negras do Inferno, Alayda buscou aquela voz gutural e profunda, proveniente do mar revoltoso da cidade costeira de Maremontes.

Deixando marcas de seus pés na areia branca, Alayda, com seu longo e sensual vestido branco e seus cabelos dourados e desgrenhados balançando ao sabor da pequena brisa que também fazia rodopiar lentamente as névoas, foi caminhando, como que indo ao encontro da estranha voz que vinha do mar, a voz que, agora, ela percebia, tinha um timbre familiar, fúnebre; lembrava, vagamente, a doce voz de Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.

- Alayda!... Alayda!... Alayda, meu amor!... Venha!
Venha, Alaydaaaaa! Venha morrer comigo, Alaydaaaa!...

E Alayda, tremendo de frio, o juízo perdido para sempre, caminhou lentamente entre as sombras da noite, caminhou para o mar, adentrando-o e desaparecendo em suas águas gélidas e turbulentas.

E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar de Maremontes, naquela noite sombria, onde as névoas bailavam ao luar. O mar chamara Alayda para a morte!


* * *

Pela manhã, a criadagem da casa sentiu a falta de Alayda. Ela costumava tocar piano todas as manhãs. Num instante todos sabiam do desaparecimento de Alayda.

Os pescadores, entre eles o rude Antero, ex-amante de Alayda, viram as pegadas na areia. Antero sabia: aquelas marcas delicadas de um pequeno pé, só podiam ser de Alayda; além disso, ainda pairava no ar aquele perfume que só ela usava, um perfume de amor selvagem e libidinoso.

Não havia dúvida para o povo de Maremontes, ela morrera no mar. Suicidara-se. Morrera. Como morrem todos aqueles que amam a poesia tristonha do amor e os poetas fracassados nesta vida estranha e ruim.

Fim




Peculiaridades negativas:
(ocorrências verificadas na superfície do texto)

a) substantivo próprio Alayda:
23 vezes

b) verbo ser:
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
Era poetisa, também.
Foi uma paixão efêmera como um temporal de verão.
Pouco a pouco ela foi enlouquecendo
era como um punhal de fogo em seu peito
outrora ela fora bela e formosa
E foram noites e noites frias
foi caminhando
E foi assim que Alayda sumiu nas águas do mar

c) adjetivo estranha:
estranha
estranha


d) adjetivo sombria:
sombria
sombrias

e) substantivo piano:
tocando seu piano de forma exuberante
Como cantora e pianista, era soberba, magistral.
musicando ao piano os sonetos de amor de Rúbio
Ela costumava tocar piano todas as manhãs.

f) substantivo prazer:
E amante dos prazeres proibidos do sexo.
Mas a fome de prazeres pecaminosos levara Alayda a trair o ingênuo Rúbio.

g) substantivo mar:
13 vezes

h) verbo morrer:
8 vezes

i) lugares-comuns:
beijos ardentes
fardo insuportável
madrugada fria e cinzenta
voz gutural
noites e noites frias
paixão efêmera
tremendo de frio

j) dois sinônimos contíguos e semelhante valor semântico:
lascívia
lubricidade

k) estruturas sintáticas paralelas:
Morreu no mar, como convém aos poetas fracassados nas lides do amor.
Rúbio, o poeta fracassado na vida e no amor.
os poetas fracassados nesta vida



Virtudes do texto
a) comparação original ("punhal de fogo"):
era como um punhal de fogo em seu peito

b) Assonância (repetição cíclica de sons vocálicos semelhantes):
Já no título ( "Quando o Mar chamou Alayda" ), constatamos a presença contínua do fonema "a", que possibilita a percepção de uma beleza extra.

c) Aliteração (figura de linguagem que privilegia a reprodução de idênticos sons consonantais) - ocorre ainda aí uma discreta (porém melíflua) aliteração - no caso, a letra "m": Mar chamou.

d) regência de precipitar(-se):
“Rúbio atirou-se dos rochedos, precipitando-se ao mar.”

Não existe a regência “precipitar-se a”, conforme verificamos no Aurélio e no Houaiss. A regência desse verbo abrange, segundo eles, as seguintes preposições:
De: Precipitou-se do telhado, fugindo dos ratos furiosos.
Em: Precipitou-se nas águas revoltas.
“Precipitou-se ela mesma na miséria.” (sentido figurado) (Houaiss)
Com: “Os acontecimentos precipitaram-se, com as ocorrências políticas.” (Aurélio)
Contra: O boi precipitou-se contra a cerca de arame farpado.
Para: Precipitou-se para fora da sala em chamas.

Atuando como transitivo direto, citamos:
Aquele gesto precipitou os acontecimentos.

E atuando como intransitivo e em sentido figurado:
Precipitou-se e não foi feliz.
Os corredores precipitaram-se uns após os outros.

Todavia, não vemos a menor oposição gramatical quanto ao encaixe (bem oportuno, aliás) da preposição “a” na oração citada e, em consequência, no corpus da própria Língua Portuguesa. (Isto numa perspectiva sincrônica, e partindo da lógica do léxico, perpetuamente auto-renovante.)

e) Narrador. Personagens
O narrador pode ser, segundo Santos & Gomes (1):
– Implícito (pressuposto pelo texto, em terceira pessoa)
– Explícito (diz eu, em primeira pessoa)
– Participante da história (como personagem, ser o protagonista, adjuvante ou testemunha)
– Não participante da história (não toma parte dos acontecimentos, apenas narra a história).

No caso, o narrador é implícito, onisciente (sabe de tudo e tudo conta - um tudo evidentemente limitado, porque dentro das fronteiras formais do tipo textual "conto").

Os personagens injustiçados pelos homens ou perseguidos pelo destino (ou ambas as coisas) conseguem a nossa imediata simpatia. Essa identificação instintiva ocorre nos livros, de onde saltam envoltos pelo nosso prazer, nosso ódio, nossa dor ou nossa alegria.
A existência de alguns personagens bons no leito narrativo ameniza a secura, o sarcasmo, o desprezo e os maus tratos da habitual legião de seres vis.


“Ela queria morrer, morrer e mais nada.”
Frase de efeito catalisante, enfático, transmitindo com certeza a decisão da personagem. A reiteração do verbo, o impacto final e o efeito real são auxiliados pelo ritmo trabalhado, bem distribuído: ria – rer – rer – na.



Conclusões
a) Falando dos esforços literários para atingir um patamar de qualidade, Calvino (7) assim se expressa:
"O êxito do escritor, tanto em prosa quanto em verso, está na felicidade da expressão verbal, que em alguns casos pode realizar-se por meio de uma fulguração repentina, mas que em regra geral implica uma paciente procura da frase em que todos os elementos são insubstituíveis, do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado.
Estou convencido de que escrever prosa em nada difere de escrever poesia; em ambos os casos, trata-se da busca de uma expressão necessária, única, densa, concisa, memorável." (pág. 61)

E Santos (5) revela as latentes sutilezas da linguagem artística, afetas à Teoria do Texto, quando faz o elogio da profª Ingedore:
"Com Ingedore Koch, passamos a entender a trajetória e os grandes temas da Linguística Textual, descobrimos que linguagem é interação e texto é tecido, teia, iceberg cujos segredos devem ser desvendados."

Já Platão & Fiorin (6) assim se referem à intertextualidade, esse fenômeno às vezesquase imperceptível, sempre presente num enunciado:
“Os textos têm a propriedade intrínseca de se constituir a partir de outros textos. Por isso, todos eles são atravessados, ocupados, habitados pelo discurso do outro. Por conseguinte, a linguagem é fundamentalmente heterogênea. (pág. 29)


b) Título. Nomes. Finalizando
O chamamento, o apelo, o estímulo, a força sísmica que advém desse título nos conduz prisioneiros ao conto: "O que ocorrerá em seguida?!" - perguntamo-nos inconscientemente.

E as respostas se mostram na narrativa,
administrada com a habitual tensão e lirismo pelo escritor - soluções que descobrimos e das quais nos apropriamos com mais sofreguidão, mais ânsia, angústia e serenidade, pois que apresentadas por um título que já introduz a trama, o enredo, a história.

E o nome “Alayda” passa-nos a ideia de uma personagem meio nobre (lady), meio musical (alaúde). Polimorfa, múltipla, plural.
De Grande Sertão: Veredas lembramos um nome celebrizado em estudos de grossos tomos e magros artigos de crítica literária: Diadorim. Lembra este nome: adorar, dia, dourar, ouro.

“Quando o Mar chamou Alayda” equivale, em expectativa narrante, ao clássico “Era uma vez, há muitos e muitos anos...”

Convivem enfim no conto a piedade, a esperança, a saudade, o sonho e a inocência, lado a lado com a indiferença, a vaidade, o drama, a tragédia, a miséria e a opulência...



Bibliografia:
1 - A Cena Escolar Brasileira (Módulo V - Curso de Pós-Graduação). Coord.: Leonor Werneck dos Santos e Regina Gomes. 2008.

2 - A personagem, de Beth Brait. 8ª ed. SP, Ática, 2006.

3 - A procura de Stevatas e outras histórias, de
Rogério Silvério de Farias.

4 - Dicionário Aurélio, de Aurélio B. Holanda. 2ª ed. Nova Fronteira, RJ, 1996.

5 – Dicionário Houaiss Eletrônico, de Antonio Houaiss.

6 - Homenagem a Ingedore Villaça Koch, deLeonor Werneck dos Santos (UFRJ).
Fonte: www.filologia.org.br

7 - Lições de texto: leitura e redação de, Francisco Platão Savioli e, José Luiz Fiorin. Editora Ática, SP, 2003.

8 - Minigramática, de Ernani Terra (supervisão de José de Nicola). Editora Scipione, SP, 2002.

9 - Seis propostas para o próximo milênio, de Ítalo Calvino. Tradução de Ivo Barroso. Companhia das Letras, RJ, 1990.

Mensagem de Vida

Dona Cacilda é uma senhora de 92 anos, miúda, e tão elegante, que todo dia às 08 da manhã ela já está toda vestida, bem penteada e discretamente maquiada, apesar de sua pouca visão.

E hoje ela se mudou para uma casa de repouso: o marido, com quem ela viveu 70 anos, morreu recentemente, e não havia outra solução.

Depois de esperar pacientemente por duas horas na sala de visitas, ela ainda deu um lindo sorriso quando a atendente veio dizer que seu quarto estava pronto. Enquanto ela manobrava o andador em direção ao elevador, dei uma descrição do seu minúsculo quartinho, inclusive das cortinas floridas que enfeitavam a janela.

Ela me interrompeu com o entusiasmo de uma garotinha que acabou de ganhar um filhote de cachorrinho.

- Ah, eu adoro essas cortinas...

- Dona Cacilda, a senhora ainda nem viu seu quarto... Espera um pouco...

- Isto não tem nada a ver, respondeu. Felicidade é algo que você decide por princípio. Se eu vou gostar ou não do meu quarto, não depende de como a mobília vai estar arrumada... Vai depender de como eu preparo minha expectativa. E eu já decidi que vou adorar. É uma decisão que tomo todo dia quando acordo.

Sabe, eu posso passar o dia inteiro na cama, contando as dificuldades que tenho em certas partes do meu corpo que não funcionam bem... Ou posso me levantar agradecendo pelas outras partes que ainda me obedecem.

- Simples assim?

- Nem tanto; isto é para quem tem autocontrole e exigiu de mim um certo 'treino' pelos anos a fora, mas é bom saber que ainda posso dirigir meus pensamentos e escolher, em consequência, os sentimentos.

E calmamente, continuou:

- Cada dia é um presente, e enquanto meus olhos se abrirem, vou focalizar o novo dia, mas também as lembranças alegres que eu guardei para esta época da vida. A velhice é como uma conta bancária: você só retira aquilo que guardou. Então, meu conselho para você é depositar um monte de alegrias e felicidades na sua Conta de Lembranças.

E, aliás, obrigada por este seu depósito no meu Banco de lembranças. Como você vê, eu ainda continuo depositando e acredito que, por mais complexa que seja a vida, sábio é quem a simplifica.

Depois me pediu para anotar:



COMO SE MANTER JOVEM
1. Deixe fora os números que não são essenciais. Isto inclui a idade, o peso e a altura. Deixe que os médicos se preocupem com isso.

2. Mantenha só os amigos divertidos. Os depressivos puxam para baixo. (Lembre-se disto se for um desses depressivos!)

3. Aprenda sempre:
Aprenda mais sobre computadores, artes, jardinagem, o que quer que seja. Não deixe que o cérebro se torne preguiçoso.

4. Aprecie mais as pequenas coisas.

5. Ria muitas vezes, durante muito tempo e alto. Ria até lhe faltar o ar. E se tiver um amigo que o faça rir, passe muito e muito tempo com ele / ela!

6. Quando as lágrimas aparecerem:
Aguente, sofra e ultrapasse. A única pessoa que fica conosco toda a nossa vida somos nós próprios. VIVA enquanto estiver vivo.

7. Rodeie-se das coisas que ama:
Quer seja a família, animais, plantas, hobbies, o que quer que seja. O seu lar é o seu refúgio..

8. Tome cuidado com a sua saúde:
Se é boa, mantenha-a.
Se é instável, melhore-a.
Se não consegue melhorá-la, procure ajuda...

9. Não faça viagens de culpa. Faça uma viagem ao centro comercial, até a um país diferente, mas NÃO para onde haja culpa.

10. Diga às pessoas que ama que as ama a cada oportunidade.


(Recebido de valna.aparecida@bol.com.br, professora e bibliotecária, em 26/02/2010. Sem citação da fonte.)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

"A Importância do Maravilhoso na Literatura Infantil" (Cristiane Madanêlo)

Em seus primórdios, a Literatura foi essencialmente fantástica. Nessa época era inacessível à humanidade o conhecimento científico dos fenô-menos da vida natural ou humana, assim sendo o pensamento mágico dominava em lugar da lógica que conhecemos. A essa fase mágica, e já revelando preocupação crítica às relações humanas ao nível do social, correspondem as fábulas. Compreende-se, pois, porque essa literatura arcaica acabou se transformando em Literatura Infantil: a natureza mágica de sua matéria atrai espontaneamente as crianças.

A literatura fantasista foi a forma privilegiada da Literatura Infantil, desde seus primórdios (sec. VII), até a entrada do Romantismo, quando o ma-ravilhoso dos contos populares é definitivamente incorporado ao seu acervo (pelo trabalho dos Ir-mãos Grimm, na Alemanha; de Hans Christian An-dersen, na Dinamarca; Garret e Herculano em Por-tugal; etc.)

Considera-se como Maravilhoso todas as situa-ções que ocorrem fora do nosso entendimento da dicotomia espaço/tempo ou realizada em local vago ou indeterminado na terra. Tais fenômenos não obedecem as leis naturais que regem o planeta.

O Maravilhoso sempre foi e continua sendo um dos elementos mais importantes na literatura des-tinada às crianças. Através do prazer ou das emo-ções que as estórias lhes proporcionam, o simbo-lismo que está implícito nas tramas e personagens vai agir em seu inconsciente, atuando pouco a pouco para ajudar a resolver os conflitos interiores normais nessa fase da vida.

A Psicanálise afirma que os significados simbó-licos dos contos maravilhosos estão ligados aos e-ternos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional. É durante essa fase que surge a necessidade da criança em defen-der sua vontade e sua independência em relação ao poder dos pais ou à rivalidade com os irmãos ou amigos.

É nesse sentido que a Literatura Infantil e, principalmente, os contos de fadas podem ser deci-sivos para a formação da criança em relação a si mesma e ao mundo à sua volta.

O maniqueísmo que divide as personagens em boas e más, belas ou feias, poderosas ou fracas, etc. facilita à criança a compreensão de certos valores básicos da conduta humana ou convívio social. Tal dicotomia, se transmitida atravás de uma linguagem simbólica, e durante a infância, não será prejudicial à formação de sua consciência ética..

O que as crianças encontram nos contos de fa-das são, na verdade, categorias de valor que são pe-renes. O que muda é apenas o conteúdo rotulado de bom ou mau, certo ou errado.

Lembra a Psicanálise, que a criança é levada a se identificar com o herói bom e belo, não devido à sua bondade ou beleza, mas por sentir nele a pró-pria personificação de seus problemas infantis: seu inconsciente desejo de bondade e beleza e, princi-palmente, sua necessidade de segurança e proteção. Pode assim superar o medo que a inibe e enfrentar os perigos e ameaças que sente à sua volta, podendo alcançar gradativamente o equilíbrio adulto.

A área do Maravilhoso, da fábula, dos mitos e das lendas tem linguagem metafórica que se comu-nica facilmente com o pensamento mágico, natural das crianças.

Segundo a Psicanálise, os significados simbóli-cos dos contos maravilhosos estão ligados aos eter-nos dilemas que o homem enfrenta ao longo de seu amadurecimento emocional.



Fonte: http://www.graudez.com.br/litinf
Capturado em 20/02/2010

"A Literatura Infantil" (Cristiane Madanêlo)

       Afinal o que é Literatura Infantil?
       Principalmente os educadores vivenciam de perto a evolução do maravilhoso ser que é a criança. O contato com textos recheados de encantamento faz-nos perceber quão importante e cheia de responsabilidade é toda forma de literatura.

       A palavra literatura é intransitiva e, independente do adjetivo que receba, é arte e deleite. Sendo assim, o termo infantil associado à literatura não significa que ela tenha sido feita necessariamente para crianças. Na verdade, a literatura infantil acaba sendo aquela que corresponde, de alguma forma, aos anseios do leitor e que se identifique com ele.

       A autêntica literatura infantil não deve ser feita essencialmente com intenção pedagógica, didática ou para incentivar hábito de leitura. Este tipo de texto deve ser produzido pela criança que há em cada um de nós. Assim o poder de cativar esse público tão exigente e importante aparece.

       O grande segredo é trabalhar o imaginário e a fantasia. E como foi que tudo começou?



                Origens da Literatura Infantil
       O impulso de contar histórias deve ter nascido no homem, no momento em que ele sentiu necessidade de comunicar aos outros alguma experiência sua, que poderia ter significação para todos. Não há povo que não se orgulhe de suas histórias, tradições e lendas, pois são a expressão de sua cultura e devem ser preservadas. Concentra-se aqui a íntima relação entre a literatura e a oralidade.

       A celula mater da Literatura Infantil, hoje conhecida como "clássica", encontra-se na Novelística Popular Medieval que tem suas origens na Índia.  Descobriu-se que, desde essa época, a palavra impôs-se ao homem como algo mágico, como um poder misterioso, que tanto poderia proteger, como ameaçar, construir ou destruir.
       São também de caráter mágico ou fantasioso as narrativas conhecidas hoje como literatura primordial. Nela foi descoberto o fundo fabuloso das narrativas orientais, que se forjaram durante séculos a.C., e se difundiram por todo o mundo, através da tradição oral.
       A Literatura Infantil contitui-se como gênero durante o século XVII, época em que as mudanças na estrutura da sociedade desencadearam repercussões no âmbito artístico.

       O aparecimento da Literatura Infantil tem características próprias, pois decorre da ascensão da família burguesa, do novo "status" concedido à infância na sociedade e da reorganização da escola. Sua emergência deveu-se, antes de tudo, à sua associação com a Pedagogia, já que as histórias eram elaboradas para se converterem em instrumento dela.

       É a partir do século XVIII que a criança passa a ser considerada um ser diferente do adulto, com necessidades e características próprias, pelo que deveria distanciar-se da vida dos mais velhos e receber uma educação especial, que a preparasse para a vida adulta.



As Mil e Uma Noites
       Coleção de contos árabes (Alf Lailah Oua Lailah) compilados provavelmente entre os séculos XIII e XVI. São estruturados como histórias em cadeia, em que cada conto termina com uma deixa que o liga ao seguinte.  Essa estruturação força o ouvinte curioso a retornar para continuar a história, interrompida com suspense no ar.

       Foi o orientalista francês Antoine Galland o responsável por tornar o livro de As mil e uma Noites conhecido no ocidente (1704). Não existe texto fixo para a obra, variando seu conteúdo de manuscrito a manuscrito.  Os árabes foram reunindo e adaptando esses contos maravilhosos de várias tradições. Assim, os contos mais antigos são provavelmente do Egito do séc. XII. A eles foram sendo agregados contos hindus, persas, siríacos e judaicos.

       O uso do número 1001 sugere que podem aparecer mais histórias, ligadas por um fio condutor infinito. Usar 1000 talvez desse a idéia de fechamento, inteiro, que não caracteriza a proposta da obra.


       Os mais famosos contos são:
- O Mercador e o Gênio
- Aladim ou a Lâmpada Maravilhosa
- Ali-Babá e os Quarenta Ladrões Exterminados por uma Escrava
- As Sete Viagens de Simbá, o Marinheiro

       O rei persa Shariar, vitimado pela infidelidade de sua mulher, mandou matá-la e resolveu passar cada noite com uma esposa diferente, que mandava degolar na manhã seguinte. Recebendo como mulher a Sherazade, esta iniciou um conto que despertou o interesse do rei em ouvir-lhe a continuação na noite seguinte.  Sherazade, por artificiosa ligação dos seus contos, conseguiu encantar o monarca por mil e uma noites e foi poupada da morte.

       A história conta que, durante três anos, moças eram sacrificadas pelo rei, até que já não havia mais virgens no reino, e o vizir não sabia mais o que fazer para atender o desejo do rei. Foi quando uma de suas filhas, Sheerazade, pediu-lhe que a levasse como noiva do rei, pois sabia um estratagema para escapar ao triste fim que a esperava.
       A princesa, após ser possuída pelo rei, começa a contar a extraordinária "História do Mercador e do Efrit", mas, antes que a manhã rompesse, ela parava seu relato, deixando um clima de suspense, só dando continuidade à narrativa na manhã seguinte.
       Assim, Sheerazade conseguiu sobreviver, graças à sua palavra sábia e a curiosidade do rei. Ao fim desse tempo, ela já havia tido três filhos e, na milésima primeira noite, pede ao rei que a poupe, por amor às crianças. O rei finalmente responde que lhe perdoaria, sobretudo pela dignidade de Sheerazade.

       Fica então a metáfora traduzida por Sheerazade: a liberdade se conquista com o exercício da criatividade.




Fonte: http://www.graudez.com.br/litinf
Capturado em 20/02/2010.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Estudo das diversas modalidades de textos infantis" (Cristiane Madanêlo - UFRJ)

I - Fábulas
II - Contos de Fadas
III - Estrutura básica dos contos de fadas
IV - Lendas
V - Poesia


Fábulas
Fábula vem do latim – fari, falar e do grego – Phao, contar algo.

Narrativa alegórica de uma situação vivida por animais, que referencia uma situação humana e tem por objetivo transmitir moralidade.
Algumas associações entre animais e características humanas, feitas pelas fábulas, mantiveram-se fixas em várias histórias e permanecem até os dias de hoje:
leão - poder real
lobo - dominação do mais forte
raposa - astúcia e esperteza
cordeiro - ingenuidade

A proposta principal da fábula é a fusão de dois elementos: o lúdico e o pedagógico. As histórias, ao mesmo tempo que distraem o leitor, apresentam as virtudes e os defeitos humanos através de animais. Essa lição moral é apresentada através da narrativa.

Há registros de fábulas egípcias e hindus, mas atribui-se à Grécia a criação efetiva desse gênero narrativo. Esopo (Séc. V a.C.) a reinventou, sendo ela aperfeiçoada, séculos mais tarde, pelo escravo romano Fedro (Séc. I a.C.), que a enriqueceu estilisticamente.

Ao francês Jean La Fontaine (1621/1692) coube o mérito de dar-lhe a forma definitiva, introduzindo-a para sempre na literatura ocidental.

Eis algumas fábulas imortalizadas por La Fontaine:
A cigarra e a formiga
A raposa e o esquilo
A corte do leão
A leiteira e o pote de leite
Animais enfermos da peste
O leão e o rato
O pastor e o rei
O leão, o lobo e a raposa
O leão doente e a raposa
O lobo e o cordeiro
Os funerais da leoa

O brasileiro Monteiro Lobato dedica um volume de sua produção literária para crianças às fábulas, muitas delas adaptadas de La Fontaine. Dessa coletânea, destacam-se:
A cigarra e a formiga
A coruja e a águia
O lobo e o cordeiro
A galinha dos ovos de ouro e
A raposa e as uvas.



Contos de Fadas
Quem lê "Cinderela" não imagina que há registros de que essa história já era contada na China, durante o século IX d.C. E, assim como tantas outras, tem-se perpetuado há milênios, atravessando toda a força e a perenidade do folclore dos povos, sobretudo, através da tradição oral.

Pode-se dizer que os contos de fadas, na versão literária, atualizam ou reinterpretam os conflitos do poder e a formação dos valores, misturando realidade e fantasia, no clima do "Era uma vez...".

Lidam eles com conteúdos da sabedoria popular, com conteúdos essenciais da condição humana. Neles encontramos o amor, os medos, as dificuldades de ser criança, as carências (materiais e afetivas), as auto-descobertas, as perdas, as buscas, a solidão e o encontro.

Os contos de fadas caracterizam-se pela presença do elemento "fada". Etimologicamente, a palavra fada vem do latim fatum (destino, fatalidade, oráculo).

Tornaram-se conhecidas como seres fantásticos ou imaginários, de grande beleza, que se apresentavam sob forma de mulher. Dotadas de virtudes e poderes sobrenaturais, interferem na vida dos homens, para auxiliá-los em situações-limite, quando já nenhuma solução natural seria possível.

Podem, ainda, encarnar o Mal e apresentarem-se como o avesso da imagem anterior, isto é, como bruxas. Vulgarmente, se diz que fada e bruxa são formas simbólicas da eterna dualidade da mulher, ou da condição feminina.

O enredo básico dos contos de fadas expressa os obstáculos, ou provas, que precisam ser vencidas, como um verdadeiro ritual iniciático, para que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja pelo encontro de seu verdadeiro "eu", seja pelo encontro da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado.



Estrutura básica dos contos de fadas
Início - nele aparece o herói (ou heroína) e sua dificuldade ou restrição: problemas vinculados à realidade, como estados de carência, penúria, conflitos, etc., que desequilibram a tranquilidade inicial:

Ruptura - é quando o herói se desliga de sua vida concreta, sai da proteção e mergulha no completo desconhecido;

Confronto e superação de obstáculos e perigos - busca de soluções no plano da fantasia com a introdução de elementos imaginários;

Restauração - início do processo de descobrir o novo, possibilidades, potencialidades e polaridades opostas;

Desfecho - volta à realidade. União dos opostos, germinação, florescimento, colheita e transcendência.



Lendas
Vem do latim legenda / legen - ler.
Nas primeiras idades do mundo, os seres humanos não escreviam, mas conservavam suas lembranças na tradição oral. Onde a memória falhava, entrava a imaginação para suprir-lhe a falta.

A lenda é uma narrativa baseada na tradição oral e de caráter maravilhoso, cujo argumento é tirado da tradição de um dado lugar. Sendo assim, relata os acontecimentos numa mistura entre referenciais históricos e imaginários.

A lenda, de caráter anônimo, geralmente está marcada por um profundo sentimento de fatalidade. Tal sentimento é importante, porque fixa a presença do Destino, aquilo contra o que não se pode lutar e demonstra o pensamento humano dominado pela força do desconhecido.

A lenda é uma forma de narrativa antiquíssima, cujo argumento é tirado da tradição. Relato de acontecimentos, onde o maravilhoso e o imaginário superam o histórico e o verdadeiro.

De origem muitas vezes anônima, ela é transmitida e conservada pela tradição oral.
O folclore brasileiro é rico em lendas regionais, destacando-se os seguintes títulos:
Boitatá
Boto cor-de-rosa
Caipora ou Curupira
Iara
Lobisomem
Mula-sem-cabeça
Negrinho do Pastoreio
Saci Pererê e
Vitória Régia.



Poesia
O gênero poético tem uma configuração distinta dos demais gêneros literários. Sua brevidade, aliada ao potencial simbólico apresentado, transforma a poesia em uma atraente e lúdica forma de contato com o texto literário.



Fonte:www.graudez.com.br/litinf/
Capturado em 27/12/2008

"A construção de sentidos no Hipertexto: demandas linguísticas e cognitivas" (Ingedore Koch (UNICAMP/CNPq)

"II Encontro Nacional sobre Hipertexto"
(Comunicação temática)



1. Conceituação
Para discutir a construção de sentidos no hipertexto, cabe, em primeiro lugar, proceder à conceituação de nosso objeto reflexão.
É grande, hoje em dia, o número de autores que
vêm se ocupando do hipertexto. Muitos deles ressaltam a dificuldade de chegar a uma conceituação adequada, visto que ainda se continua a tomar como parâmetro o texto impresso, como bem mostra Beiguelman (2003:11):

Tão estável e paradigmático é o texto impresso que não se conseguiu inventar um vocabulário próprio para as práticas de escrita e leitura on line. As telas de qualquer site dispõem de páginas, critérios biblioteconômicos de organização de conteúdo regem os diretórios e a armazenagem é feita de acordo com padrões arquivísticos de documentos impressos, seguindo à risca o modelo de 'pastas' e 'gavetas'.

De forma bem simplificada, pode-se dizer que o termo designa uma escritura não-seqüencial e não-linear, que se ramifica de modo a permitir ao leitor virtual o acesso praticamente ilimitado a outros textos, na medida em que procede a escolhas locais e sucessivas em tempo real.
Theodor Nelson, criador do termo hipertexto nos anos sessenta, considera o hipertexto

'um conceito unificado de idéias e de dados interconectados, de tal modo que estes dados possam ser editados em computador. Desta forma, tratar-se-ia de uma instância que poria em evidência não só um sistema de organização de dados, como também um modo de pensar' (Nelson, 1993).

A partir de então, tornou-se comum a conceituação de hipertexto como metáfora do pensamento.
Para Bairon (1995:45), trata-se de um texto estruturado em rede, uma matriz de textos potenciais, de forma que cada texto particular vai consistir em uma leitura realizada a partir dessa matriz.
Lévy (1993:33) afirma que o hipertexto melhor se define como um conjunto de nós ligados por conexões. Os nós podem ser palavras, páginas, imagens, gráficos ou parte de gráficos, seqüências sonoras, documentos complexos que podem ser eles mesmos hipertextos. Os itens de informação não são ligados linearmente, como uma corda com nós, mas cada um deles, ou a maioria deles, estende suas conexões em estrela, de modo reticular.
Para Levy (1996), o hipertexto, configurado em redes digitais, desterritorializa o texto, deixando-o sem fronteiras nítidas, sem interioridade definível. O texto, assim constituído, é dinâmico, está sempre por se fazer. Isto implica, por parte do leitor, um trabalho infindo de organização, seleção, associação, contextualização de informações e, conseqüentemente, de expansão de um texto em outros textos ou a partir de outros textos, uma vez que os textos constitutivos dessa grande rede estão contidos em outros e também contêm outros.
Bolter (1991), por sua vez, assevera que o hipertexto constitui um texto aberto ou um texto múltiplo, caracterizado pelos princípios da não-linearidade, interatividade, multicentramento e virtualidade.
Conforme Snyder (1998: 126),

hipertexto é um medium de informação que existe apenas on line, num computador. É uma estrutura composta de blocos de texto conectados por nexos (links) eletrônicos que oferecem diferentes caminhos para os usuários. O hipertexto providencia um meio de arranjar a informação de maneira não-linear, tendo o computador como automatizador das ligações de uma peça de informação com outra.




2. Características
As conceituações aqui apresentadas permitem-nos elencar as principais características que vêm sendo apontadas para o hipertexto:

1. não-linearidade (característica central) – o hipertexto estrutura-se reticularmente, não pressupondo uma leitura seqüenciada, com começo e fim previamente definidos.
Segundo Marcuschi (1999:33), o hipertexto rompe a ordem de construção ao propiciar um conjunto de possibilidades de constituição textual plurilinearizada, condicionada por interesses e conhecimentos do leitor-co-produtor (grifos do autor);

2. volatilidade – que é devida à própria natureza do suporte;

3. espacialidade topográfica – trata-se de um espaço não-hierarquizado de escritura/leitura , de limites indefinidos;

4. fragmentariedade, já que não existe um centro regulador imanente;

5. multissemiose – por viabilizar a absorção de diferentes aportes sígnicos e sensoriais (palavras, ícones, efeitos sonoros, diagramas, tabelas tridimensionais etc.) numa mesma superfície de leitura;

6. descentração ou multicentramento – a descentração estaria ligada à não-linearidade, à possibilidade de um deslocamento indefinido de tópicos; contudo, já que não se trata de um simples agregado aleatório de fragmentos textuais, há autores que contestam essa característica, preferindo falar em multicentramento, como é o caso, por exemplo, Bolter (1991) e Elias (2000, 2005);

7. interatividade – possibilidade de o usuário interagir com a máquina e receber, em troca, a retroação da máquina;

8. intertextualidade – o hipertexto é um 'texto múltiplo', que funde e sobrepõe inúmeros textos que se tornam simultaneamente acessíveis a um simples toque de mouse;

9. conectividade – determinada pela conexão múltipla entre blocos de significado;

10. virtualidade – outra característica essencial do hipertexto, que constitui uma 'matriz de textos potenciais (cf. Bairon, 1995).




3. Links e nós
Santaella (2001) chama a atenção para o fato de que, enquanto no texto impresso predomina um fluxo linear, no caso do hipertexto essa linearidade se rompe em unidades ou blocos de informação, cujos tijolos básicos são os nós e nexos associativos, formando um sistema de conexões que permitem conectar um nó a outro, por meio dos hiperlinks.
Isto é, uma das principais inovações do texto eletrônico consiste, justamente, nesses dispositivos técnico-informáticos que permitem efetivar ágeis deslocamentos de navegação on line, bem como realizar remissões que possibilitam acessos virtuais do leitor a outros hipertextos de alguma forma correlacionados (Xavier, 2002).
Os hiperlinks podem ser fixos (aqueles que ocupam um espaço estável e constante no site) ou móveis (os que flutuam no espaço hipertextual, variando a sua aparição conforme as conveniências do produtor), desempenhando funções importantes, entre as quais a dêitica, a coesiva e a cognitiva.
Os hiperlinks dêiticos funcionam como focalizadores de atenção: apontam para um lugar 'concreto', atualizável no espaço digital; ou seja, o sítio indicado existe virtualmente, podendo ser acessado a qualquer momento. Possuem, portanto, caráter essencialmente catafórico, prospectivo, visto que ejetam o leitor para fora do texto que está na tela, remetendo suas expectativas de completude para outros espaços. Isto é, como bem mostra Xavier (2002), eles

"convidam o leitor a um movimento de projeção, de êxodo não-definitivo dos limites do lido, sugerem-lhe insistentemente atalhos que o auxiliem na apreensão do sentido, ou seja, apresentam-lhes rota alternativas que lhe permitam pormenorizar certos aspectos e preencher on line lacunas de interpretação".

Em outras palavras, os links são dotados de função dêitica pelo fato de monitorarem a atenção do leitor no sentido da seleção de focos de atenção, permitindo-lhe produzir uma leitura mais aprofundada e rica em pormenores sobre o tópico em curso, bem como cercar determinado problema por vários ângulos, já que remetem sempre a outros hipertextos que tratam de um mesmo tópico, complementando-se, reafirmando-se ou mesmo contradizendo-se uns aos outros.
Os links desempenham função coesiva por amarrarem as informações, 'soldando' peças esparsas de maneira coerente. Por essa razão, é importante para o produtor atar os hiperlinks de acordo com certa ordem semântico-discursiva, de modo a garantir ao hiperleitor a fluência de leitura e o encaminhamento da compreensão sem excessivas interrupções ou rupturas cognitivas.
Do ponto de vista cognitivo, pode-se dizer que o hiperlink exerce o papel de um 'encapsulador' de cargas de sentido. Para tanto, cabe ao produtor proceder a uma construção estratégica dos hiperlinks, de maneira que eles sejam capazes de acionar modelos (frames, scripts, esquemas etc.) que o leitor tem representados na memória, levando-o a inferir o que poderá existir por trás de cada um deles, formulando hipóteses sobre o que poderá encontrar ao segui-los.
Os links funcionam, portanto, como portas de entrada para outros espaços, visto que remetem o leitor a outros textos virtuais que vão incrementar a leitura. Cada um desses textos, uma vez atualizado, torna-se, por alguns instantes, centro de atenção do leitor, para, logo em seguida, descentralizar-se no momento da atualização de outro(s) texto(s) da rede. Por esse motivo, cada leitura do hipertexto será uma leitura diferente, já que cada atualização é um evento único, com condições de produção próprias, quer se trate do mesmo leitor ou de outros leitores: em se tratando de um texto aberto ou 'múltiplo', os textos que constituem a rede tratam de diversos temas, embora interligados, como já foi mencionado.
Ao acionar a rede textual, em dado momento, o leitor atualiza alguns desses textos, de acordo com seus objetivos de leitura, marca trechos que considera importantes, associa os conhecimentos novos ao seu conhecimento prévio e vai construir um percurso próprio de leitura dentre os muitos outros possíveis.




4. Demandas linguísticas e cognitivas
Xavier (2002:28-29) concebe o hipertexto como 'um espaço virtual inédito e exclusivo no qual tem lugar um modo digital de enunciar e de construir sentido'.

Para Levy (1993:40), a memória humana é estruturada de modo que o homem compreende e retém melhor aquilo que está organizado em relação espacial, como é o caso das representações esquemáticas. Ora, o hipertexto propõe vias de acesso e instrumentos de orientação sob forma de diagramas, de redes ou de mapas conceituais manipuláveis e dinâmicos, favorecendo, desta maneira, um domínio mais fácil e mais rápido da matéria do que o audiovisual clássico ou o suporte impresso tradicional.
Por esta razão, o hipertexto não é feito para ser lido do começo ao fim, mas por meio de buscas, descobertas e escolhas que irão levar à produção de UM sentido possível, entre muitos outros. Ou seja, no hipertexto a multiplicidade de leituras é condição mesma de sua existência: sua estrutura flexível e não-linear favorece buscas divergentes e o trilhar de caminhos diversos. Nele, a conexão múltipla entre blocos de significado constitui o elemento dominante, em virtude do fato de que, como ressalta Elias (2004), a tecnologia de programação característica da máquina (html) torna o princípio de conectividade, por assim dizer, natural, desimpedido, imediato e sem problemas de tempo e distância.
Conforme Bolter (1991), a conectividade é um princípio estruturante do hipertexto, o que permite pensá-lo como qualitativamente diferente do texto impresso, constituindo, assim, um potencial revolucionário para produzir mudanças significativas nas formas de acúmulo e circulação da informação, nos conceitos de leitura, de autor e de leitor, e nas próprias formas de produção de textos, pela sua capacidade de justapor documentos alternativos e complementares.
Penso, contudo, que a maior diferença entre texto e hipertexto está na tecnologia, no suporte eletrônico. Isto porque, se o texto, conforme venho defendendo, constitui uma proposta de sentidos múltiplos e não de um sentido único (...), se todo texto é plurilinear em sua construção, então, pelo menos do ponto de vista da recepção, todo texto é um hipertexto (Koch, 2002). É este, também, o pensamento de Marcuschi (1999), quando afirma que assim como o texto virtualiza o concreto, o texto concretiza a virtualidade.
O hipertexto é, portanto, um texto constituído por traços peculiares, ele é subversivo em relação ao monologismo, à linearidade, à forma e à postura física do leitor (Ramal, 2002). É um texto elástico, que se estende reticularmente conforme as escolhas feitas pelo leitor, possibilitando-lhe escolher a sequência do material a ser lido. É ele quem determina os caminhos para a construção de um sentido. Pode-se dizer que o hipertexto 'pergunta ao leitor o que deseja ler depois'.
Assim diferentes leitores responderão de formas diferentes a essas perguntas sucessivas, de modo a definir percursos próprios, individuais. Isto implica demandas cognitivas, já que o leitor deverá ter sempre em mente o objetivo da leitura, bem como os princípios de topicidade e relevância.
Do ponto de vista da produção, os links com função dêitica, como dissemos, monitoram o leitor no sentido da seleção de focos de conteúdo, porções de hipertextos que devem merecer sua consideração caso esteja interessado em obter uma leitura mais aprofundada, mais rica em matizes sobre o tópico em tela. Eles servem, portanto, como pistas dadas ao leitor para que busque no hipertexto as informações necessárias que lhe permitam detectar o que é relevante para solucionar o problema que lhe é posto, ou seja, aquelas que vão produzir, naquele contexto, efeitos contextuais, que são dotadas de saliência relativamente àquele background. Como operadores de coesão que são, cabe, portanto, ao produtor fazê-los funcionar como orientadores da hiperleitura na direção de sentidos coerentes e compatíveis com a perspectiva postulada no todo do hipertexto.
Assim, em termos de sua função cognitiva, é importante que as palavras "linkadas" pelo produtor do texto constituam realmente palavras-chave cuidadosamente selecionadas no seu léxico mental e relacionadas de forma a permitir ao leitor estabelecer, ao navegar pelo hipertexto, encadeamentos com informações topicamente relevantes, para que seja capaz de construir uma progressão textual dotada de sentido. Em outras palavras, caberá ao hiperleitor, ao passar, por intermédio de tais links, de um texto a outro, detectar, através da teia formada pelas palavras-chave, quais as informações topicamente relevantes para manter a continuidade temática e, portanto, uma progressão textual coerente.
Marcuschi (1999) mostra que tais ligações seguem normas e princípios variados, de ordem semântica, cognitiva, cultural, social, histórica, pragmática e científica, entre outras. Por esta razão, defende que se trata aqui de um caso de "relevância mostrada" e que tal mostração é a alma mesma da navegação hipertextual. Contudo, tendo em conta que o hipertexto constrói relações de variados tipos e permite caminhos não hierarquicamente condicionados, postula que a noção de relevância que preside à continuidade temática e à progressão referencial no hipertexto não pode ser exatamente a mesma que encontramos nos estudos pragmáticos e discursivos sobre textos falados e escritos.
Do ponto de vista da leitura, perceber o que é relevante vai depender em muito da habilidade do hiperleitor não só de seguir as pistas que lhe são oferecidas, como de saber até onde ir e onde parar. Além disso, cumpre-lhe, como acabamos de dizer, ter sempre em mente o tópico, o objetivo da leitura e o problema a ser resolvido, ou seja, buscar no hipertexto as informações, as opiniões, os argumentos relevantes para a sua mais adequada solução. Caso o leitor se deixe levar desavisadamente de um link a outro e, a partir do novo texto acessado, por meio de novos links, a outros textos, e assim sucessivamente, ele correrá o risco de formar uma conexão em cascata, que, de tão extensa, poderá transformar-se numa cadeia sem fim, quebrando a continuidade temática, como é comum acontecer na conversação espontânea, em que um assunto puxa outro, que puxa outro e mais outro, de tal forma que, ao final da interação, já não é mais possível nomear o tópico da conversa, isto é, dizer sobre o que, afinal, se falou (falamos de tanta coisa...!)
Snyder (1997) afirma que "o hipertexto obscurece os limites entre leitores e escritores", visto ser construído parcialmente pelos escritores, que criam as ligações, e parcialmente pelos leitores, que decidem os caminhos a seguir. Como o hipertexto oferece uma multiplicidade de caminhos, cabendo ao leitor incorporar ainda outros caminhos e inserir outras informações, este passa a ter um papel ainda mais ativo e oportunidades ainda mais ricas que o leitor do texto impresso. Como dificilmente dois leitores tomarão exatamente as mesmas decisões e seguirão os mesmos caminhos, jamais haverá leituras exatamente iguais (se bem que isto também raríssimas vezes acontece - se é que pode acontecer - com os textos impressos). Pode-se, portanto, falar, de forma categórica, numa co-autoria. A leitura torna-se simultaneamente uma escritura, pois o autor já não controla mais o fluxo da informação. O leitor decide não só a ordem da leitura, como também os caminhos a serem seguidos e os conteúdos a serem incorporados, determinando a versão final do texto, que pode diferir significativamente daquela proposta pelo autor.
Escreve Marcuschi (1999) que a leitura do hipertexto é como uma viagem por trilhas. Ela nos obriga a ligar nós para formar redes de sentido. Sydner (1997), por seu turno, afirma que, ao ler um hipertexto, movemo-nos num labirinto que não chega a constituir uma unidade e cuja saída precisamos encontrar, de modo que o hipernavegador é submetido a um certo stress cognitivo, já que as exigências são muito mais sérias e rigorosas.
Sabe-se que o leitor de um texto constroi a sua coerência ao ser capaz de, através das intrincadas teias que nele se tecem durante a progressão textual, estabelecer mentalmente uma continuidade de sentidos. Como o hipertexto, por ligar textos diversos, não apresenta relações semânticas ou cognitivas imanentes (como, aliás, ocorre também com o texto impresso ou falado), é sempre possível que se estabeleçam relações incoerentes na seqüenciação de unidades textuais, o que pode afetar irremediavelmente a compreensão.
Foltz (1996) considera a coerência como o processo de incorporação de proposições ao texto-base. Para que isto ocorra de forma adequada, torna-se necessário haver algum tipo de integração conceitual e temática, que deve resultar da proposta de organização do produtor e da proposta de construção do sentido do leitor. Cabe a este, do mesmo modo que no texto falado ou impresso, a produção de inferências não só para o preenchimento de lacunas, como para a resolução de enigmas ou desencontros (mismatches), para a reformulação das hipóteses abortadas, tomando como base seus conhecimentos prévios (enciclopédicos ou episódicos), a pressuposição de conhecimentos compartilhados, bem como seu modelo cognitivo de contexto (Van Dijk, 1994,1997), o qual inclui necessariamente o conhecimento de gêneros textuais e de seu modo de constituição em suportes diversos.
Surge, então, o problema de determinar que tipo de suposição cognitiva os produtores de um hipertexto devem fazer para possibilitar a um grande número de leitores, cujos conhecimentos e interesses são diferentes, o acesso rápido e seguro às informações desejadas. Não lhes é possível antecipar todos os caminhos alternativos que o leitor poderá tomar. O leitor, por sua vez, tem à sua disposição uma gama enorme de possibilidades continuativas, a partir dos links e dos nós (blocos textuais) por eles indiciados, que o poderão levar ou não a manter-se fiel àquilo que é relevante para o tópico em tela. O problema é, portanto, como diz Marcuschi, um problema de macrocoerência e as ligações previstas são instrumentos vitais para possibilitar essa construção.
Escreve Braga (2004) que, segundo Lemke (2002), o hipertexto é hipermodal (texto verbal, som, imagem) e que, nesse tipo de texto, o conjunto de recursos já utilizados também em textos impressos, é ampliado e ressignificado, visto que as redes hipertextuais permitem uma conexão mais livre entre as informações veiculadas pelas unidades textuais construídas a partir de diferentes modalidades. Afirma a autora que isto favorece, inclusive, a construção de textos e materiais didáticos, na medida em que uma mesma informação pode ser complementada, reiterada e sistematizada ao ser apresentada na forma de um complexo multimodal.



5 - Considerações finais
Em virtude da possibilidade de conexões imediatas entre blocos de significados interligados como num vasto banco de dados, o hipertexto altera o significado do ato de ler e dos conceitos de autor e leitor (Elias, 2005). Segundo Bellei (2002:70-71), o autor é construtor de dispersões de sentido e o leitor autor de configurações de sentido em um sistema previamente programado.

Por esta razão, o autor e o leitor do hipertexto são colaboradores ativos (o que, evidentemente, não é privilégio do hipertexto), de modo que há autores que propõem redifinir o leitor do hipertexto como lautor (wreader) ou leitor liberto da tirania da linha, já que ele mesmo, em certa medida, produz e consome o sentido do texto. Um leitor de banco de dados deve organizar informações dispersas em termos de um certo padrão estrutural e em um espaço virtual, isto é, justapor blocos de sentido em uma atividade de 'bricolagem' (Bellei, 2002:71-73). Isto é, todo leitor é também autor, já que toda leitura torna-se um ato de escrita.
Desta forma, para Levy (1996:46),

A escrita e a leitura trocam seus papéis. Todo aquele que participa da estruturação do hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do sentido, já é um leitor. Simetricamente, quem atualiza um percurso ou manifesta este ou aquele aspecto da reserva documental contribui para a redação,conclui momentaneamente uma secrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais, que o leito reinventa, podem ser incorporados à estrutura mesma do corpus. A partir do hipertexto, toda leitura tornou-se um ato de escrita.

Hiperlinks e nós tematicamente interconectados serão, portanto, os grandes operadores da continuidade de sentidos e da progressão referencial no hipertexto, desde que o hipernauta seja capaz de seguir, de forma coerente com o projeto e os objetivos da leitura, o percurso assim indiciado. É ele próprio o responsável pela 'edificação' de seu texto.
E, para tanto, deverá não apenas mobilizar seus conhecimentos linguísticos, textuais, enciclopédicos, interacionais, como utilizar recursos próprios para a leitura, tendo em vista que o hipertexto é um labirinto formado de uma infinidade de textos, versando sobre infinitos temas, em uma extensa rede que possibilita múltiplos caminhos de leitura, e que lhe exige, portanto, o estabelecimento de conexões coerentes entre os segmentos do texto lingüisticamente materializados.
Assim, ao navegar por toda uma rede de textos, o hiperleitor faz de seus interesses e objetivos o fio organizador das escolhas e ligações, procedendo por associações de idéias que o impelem a realizar sucessivas opções e produzindo, assim, uma textualidade cuja coerência acaba sendo uma construção pessoal, visto que não haverá, efetivamente, dois textos exatamente iguais na escritura hipertextual. Persiste, no entanto, pelo menos até os nossos dias, uma restrição: o hiperleitor somente poderá partir para novas ligações que tenham sido previstas pelo autor, indiciadas pelos links por ele criados para acessar os nós assim interconectados, do que se depreende que ele não é o todo-poderoso que alguns querem fazer dele. O hipertexto, como também o texto tradicional, constitui um evento textual-interativo, embora com características próprias. Uma delas é não haver limitação do interlocutor, que pode ser qualquer pessoa desde que conectada à rede, já que o hipertexto não constitui um texto realizado concretamente, mas apenas uma virtualidade.
No hipertexto – como, aliás em todos os demais usos da linguagem – há sempre a consideração do outro, mas nele ela é levada às últimas consequências. Ainda que a única tarefa do autor fosse a marcação dos links, ele teria sempre em seu horizonte a projeção da imagem do leitor. E este será sempre co-autor, já que o acabamento do (hiper)texto não pode prescindir da participação do outro. Trata-se, no caso, de uma alteridade multilinearizada, fragmentada, descorporalizada, volatilizada, mas fundada em nossas relações com o mundo e nossa inserção em dada cultura.




6 - Referências bibliográficas
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Inge é uma jovem senhora de seus setenta e tantos anos.
Como se vê, a Internet já nasceu sem idade...