terça-feira, 1 de julho de 2008

"A cor da ternura", de Geni Guimarães (memórias)

No Dicionário Aurélio Júnior, temos:
"Romance – Descrição longa das ações e sentimentos de personagens fictícios, numa transposição da vida para um plano artístico." (773)

"Novela – Narração, usualmente curta, ordenada e completa, de fatos humanos fictícios, mas, em regra, verossímeis." (618)

Observação nossa: o livro conta a vida da personagem, da infância à juventude – romance, portanto; todavia, fá-lo sem aprofundamentos psicológicos ou longas descrições – logo, novela.
Entendemo-lo como uma novela.
Por que?
Porque a autora sintetizou fatos e situações, expondo apenas a sua essência, destacando os pontos altos da narrativa. Chamamos a isso resumo, síntese, brevidade, sinopse, sumário, concisão (graças à precisão seletiva das palavras).
Toda abordagem crítica, da exegese solene à mais humilde resenha, parte de reflexões e, se boa tal abordagem, nelas se perde: é o seu melhor, mais legítimo e superior destino.
Narrado em primeira pessoa, em linguagem despretensiosa, focando cenas cotidianas de um ambiente rural, o livro encanta pelas passagens que conduzem uma criança negra da inocência infantil ao entendimento juvenil. Seu amadurecimento, experiência, surpresas, suas enfim conclusões sobre as pessoas e o mundo ocorrem de maneira delicada, porém constante e contundente. Expõem inequivocamente a discriminação explícita, o preconceito velado, as ilusões da menininha e os sonhos da mocinha. Sonhos simples e que, afinal, se realizam.
Destaque para a impressão de que estamos vivendo sua vida, e não apenas lendo sobre ela – tal a naturalidade do estilo e a construção pé-no-chão dos personagens.
A narrativa reflete uma ambiente religioso, notadamente católico: "Foi por isso que me botaram uma correntinha com um crucifixo no pescoço, aconselhado pelo padre da igrejinha local." (35)
A linguagem, posto que comum, coloquial, possui requintes de poesia e sensibilidade artística óbvios, como à página 60, após o elogio da professora e do diretor à sua poesia: "Fui para casa feliz. Sabiás empoleirados na cabeça da alma."
Ou à página 67, após manifestação velada de preconceito coletivo, em sala de aula: "Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estancá-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?'
Ou ainda, à página 69, evocando a mãe: "Eu ouvia sua voz distante, bravadoce. Bálsamo."
...Achamo-nos então na cândida encruzilhada "Macados me mordam!" e "Raios me partam!", ao concluirmos a leitura. O veículo: espanto. O livro é a história de todas as infâncias.
Impressionam a comunicação tão fácil, a singeleza de uma criança se narrando ao narrar fatos de sua modesta, rica, humilde, esplendorosa (porque ímpar) vida.
Impressionam ainda a excelência de seus dez capítulos, a leveza de veludo do estilo e o efeito catalisador do conjunto.
Novela ou poema em prosa? --- Ambos. Por que não?
Com competência e sensibilidade, a narradora-protagonista nos conduz a recantos secretos e repletos de emoções, através de reflexões líricas e delicadas evocações.

Expressando-nos mais objetivamente, verificamos que o enredo se passa num ambiente rural, de plantações e lavouras, onde vivem a jovem e seus familiares. Seu pai e irmãos trabalham na roça, sem muita clareza se são colonos ou proprietários. A pacatez da trama, sem grandes complicações ou maior complexidade, demonstra tratar-se de uma história destinada ao público infanto-juvenil. O que não significa ausência de densidade dramática.

Poderíamos aqui reproduzir "verdades vazias e perfeitas" (verso pessoano), como:
"um permanente nó na garganta"
"história levíssima"
"flores de perpétua emoção"
"reminiscencias inolvidáveis"
"vales floridos da adolescência"

e outras tolices, mas humildemente ficamos com João Ribeiro e Rainer Maria Rilke; do primeiro, indicamos um artigo das "Páginas de Estética"(2): 'Acerca da difícil simplicidade' e, do segundo, rememoramos versos das "Elegias de Duíno"(3), que falam em sentimentos de "uma ternura imensa" diante das coisas "para sempre felizes" --- como livros bem escritos, primaveras, estrelas, anjos e Deus.
Impressão gráfica nítida e letras grandes.
Horrível a capa, ou melhor, o rosto da menina. Negro é lindo, e não esse esboço disforme. Choca. Só o rosto, porém.

Pareceram-nos as gravuras bem abaixo da qualidade do texto, com exceção de uma por capítulo, se tanto. Aconselhamos portanto à novelista que convide outro ilustrador, ou exija o melhor da atual --- tal como ela mesma se exige.



Notas:
(1) GUIMARÃES, Geni. A cor da ternura. 96 pp. 12ª edição. Editora FTD, São Paulo, 1998.

(2) RIBEIRO, João. Páginas d'Estética. J.O. Editora, RJ, 1967.

(3) RILKE, Rainer Maria. Elegias do Duíno. Trad. Dora Ferreira da Silva. Ed. Martins Fontes, SP, 2000.


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Perfil:
Geni nasceu em 1947, numa fazenda, em São Manuel, interior paulista. Infante ainda, mudou-se para outra fazenda, em Barra Bonita, onde ainda mora e leciona.
Na adolescência, colaborou em jornais locais, publicando poesias, crônicas e contos.
Obras:
"Terceiro filho" (poemas) - 1979
"Da flor o afeto" (poemas) - 1981
"Leite do peito" (contos)
"A cor da ternura" (novela) - 1998.

Já participou de várias antologias poéticas.
Recebeu o Prêmio Jabuti (Autor-revelação), em 1990, e uma Menção Especial da UBE/RJ, em 1991.

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Sobre a ilustradora Saritah Barboza, em suas próprias palavras: "Venho de uma familia de músicos, e meu pai é também artista plástico. Já participei de mais de dez exposições de arte. Acabei finalmente chegando até "A cor da ternura", que me traduz com a simplicidade e a negritude mais plenas."



Nota final:
Escrito em 18/12/2007.
Modificado 18 vezes.
Ocupei-me de sua obra por 41:50h, até 08/02/2010.

Um comentário:

Unknown disse...

Eu sou Saritah Barboza e fico muito feliz por encontrar este trabalho sobre o livro A cor da Ternura, tão importante para mim.
Gostaria de informá-lo que recebi indicações para o Jabuti e APCA de Ilustração e recebi Menção Honrosa Também.
Quero parabenizá-los pela iniciativa.
Recomendarei que meus alunos busquem as resenhas que fazem.
Um abraço

Saritah Barboza ( Sarah Rute Barboza)- professora, artista plástica e ilustradora