terça-feira, 1 de julho de 2008

Os milhões de Fernandos Pessoas

Espero cheguem a ti, ligeiras, as aflições abaixo:
Dá graças à tua juventude, a partir da qual podes te corrigir ou errar menos (ou acertar mais!), conforme tua sabedoria, bom-senso e experiência.
Tua infelicidade atual é atual, e passará; tuas faltas, nem tão graves assim, como as expões, se comporão em acertos... Angustia-te menos.
Sofre mas convicto de que é devido a reveses da vida, e não só a erros teus que te castigam. Leiamos Camões:

Erros meus, má fortuna e amor ardente (1)
Em minha perdição se conjuraram...

Belíssimos versos, não? Só que inaplicáveis a ti, pois:
a) o gênio do Poeta elevou ao máximo a transfiguração lírica do real (vale dizer, dos seus sofrimentos, comuns a todos nós);
b) O "erros meus", admita-se, depõe contra ti --- num suposto tribunal do júri espiritual; mas e a "má fortuna" e o "amor ardente", que significam o destino e os sentimentos, sobre os quais não temos poder algum?! Em que artigos de lei esse severo fórum te enquadraria? Nenhum. Pois todos nos achamos sujeitos à "má fortuna" e ao "amor ardente"...
Minimiza pois teus sentimentos de culpa, teus remorsos, tua obrumbral noção de um "castigo justo e merecido". Não te submetas a julgamento algum! És livre para falhar e te emendares! Não crês em Deus? Ótimo! Ou crês Nele duma forma bem especial, só tua, que exclua Céu e Inferno? Sabe então que milhões de fernandos pessoas olhamos não para um Firmamento redentor, porém para a Natureza toda, panteisticamente. E a defendemos e protegemos e, com ela, quase dialogamos.
Mira por outro ângulo: católicos e evangélicos se crêem ungidos, salvos, e por isso nos intimidam com penas eternas, em Seu imurmurável nome.
...Mas se seu deus deles é misericordioso, por que puniria os humanos que furtassem, roubassem, estuprassem, matassem?! Esse "bom" deus, penso, não deixaria o homem pecar e se tornar indigno dos Céus e candidato favorito às Grandes Chamas, concordas?
Então aí já se nota, jovem, a falácia dos que se proclamam Seus profetas e pecam tanto ou mais que nós e nos ameaçam ainda, desde criancinhas, nas ruas, nos lares, à mesa, nas escolas, nas praças, nas igrejas, com as sentenças clássicas:
"Deus está vendo...", "Deus não gosta disso...", "Viu? Papai-do-Céu castigou...", "Bem que eu avisei..." etc. Que deus pérfido é esse deles, não?, que cria o Homem para a crueldade, as guerras, os assassinatos em massa --- e não só na "Alemanha de Hitler", como na "Roma dos Césares", no "Império Português", no "Vietname de Richard Nixon e Lyndon Johnson" (vê os filmes "Corações e Mentes" e "Platoon!"), no "Afeganistão e Iraque de George Bush"...
Fico aí com Omar Khayyám, poeta persa, que citarei em breve.
Fernando Pessoa desmascarou esse deus, de igual para igual, em vários poemas, ridicularizando-o até (que blasfêmia!). Mostra-o como um ente comum, mera invenção atemorizante.
Todavia se manteve ajoelhado, absorto poeticamente durante seus curtos 47 segundos, numa contrição e comunhão comoventes com o seu Deus.
Acalma-te portanto, sossega teu aflito interior riquíssimo.
Tens acaso culpa dos infortúnios do Mundo, da eterna partida de pessoas impartíveis e das ilusões de amor que deságuam na solidão, no silêncio, nos dramáticos braços do abandono? Das inimizades aparentes ou falsos apreços?
És nada mais que autor e réu, agressor e agredido, e muito mais inocente do que vislumbra teu inspirado espírito, já que, como pregou um pastor iguaçuano(2), "o homem só consegue influir (administrar, decidir) 10% do seu destino. Os restantes 90% pertencem ao Impossível, ao Imponderável".
Conduze teu destino sem imposições, sem onipresentes deuses ou manhosas sugestões alheias...

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Misteriosa, a alma. Ao fechar este grotesco esboço, envolveu-me um sentimento luminoso, de missão cumprida, de porcentagem bem administrada, seguido de tremores e discretas lágrimas. O idioma grego nos legou um termo clássico para tal ocorrência, tão imortal quanto a Grécia: "catarse". Porém eu, brasileiro, simplifico: "desabafo", "alma lavada".
Sim, porque não escrevi toda uma viagem (quase cinco horas) apenas para ti: escrevi de fato para mim, posto que iniciei a escritura para outrem.
Enfim confesso: errei, magoei, entristeci profundamente famílias inteiras devido a atitudes inconseqüentes e imaturas, oriundas de traumas e frustrações e complexos, na juventude(4). Aos 42 anos, casei-me. E eis o inesperado: mudei, amadureci, fiz concursos públicos, melhorei. Bom marido, bom pai, bom genro, bom vizinho...
Detalhe: não desposei a garota dos meus sonhos. Mas tenho esposa e filha felizes, realizando-se, progredindo, aproveitando a Cidade, seja nas caminhadas na orla, nas praias, nas reuniões, nos passeios, na contemplação do mar, dos monumentos, do multiverde e das delicadas florações. Há nisso tudo alguma lição para ti?

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Quanto às editoras, ignora-as: relembra Luís de Camões, Marcel Proust, James Joyce e tantos brasileiros recusados e hoje tão disputados...
Cuida mais (ou só) da tua Obra. Reescreve-a dez, vinte, cinqüenta vezes, sempre aprimorando teus conhecimentos técnicos e teóricos sobre a Literatura e os infinitos recursos da Língua Portuguesa. E: lê os outros, lê os outros, lê os outros. Grandes ou pequenos.
Falei do "teu aflito interior riquíssimo". Falaste-me dos poemas-espinhos, que tanto te ferem quanto te e nos cativam. Pois pelo pouco que te li, indago: onde a aflição, a alma, a riqueza?! As letras incandescentes, puro arame farpado cercando nossas almas-de-gado, a grama e a água corrente? A suprema angústia de Franz Kafka, Albert Camus e Fiódor Dostoiévski, o fervor trêmulo de Euclides da Cunha, a abissalidade de João da Cruz e Sousa? O gênio de Joaquim Machado de Assis? Enfim, onde as miríades de composições? Por que as tiraste do site?(3) Aparta-te dos bate-papos simples, supérfluos e vazios do Mural e do Fórum, onde se perde um tempo irretornável: polemiza menos, afasta-te das amenidades tão deliciosas quanto frívolas e fugazes... E inicia a solitária subida, que só tu podes, à poderosa, imensa, dolorosa, musical Montanha da dor original de que nos fala Rainer Maria Rilke nas Elegias de Duíno. Decide teu futuro: superficialmente polêmico ou admiravelmente poético?

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Pressinto a proximidade de um grande escritor. Depende de vários fatores, como:
1) a solução de tua vida sentimental: casas-te ou não com a srta. Y? (Se te casares, selarás o fim dos sofrimentos amorosos, da solidão, e, em conseqüência, da tua fonte atual de inspiração).
2) casas-te com outra moça e continuas te inspirando em Y; boa solução para a poesia, que ganhará em angústia e belos versos.
3) casas-te com Y e, acalmadas as paixões pela convivência diária, te dediques, com o mesmo fervor, a mesma reverência, à Arte --- a outros e igualmente belos assuntos.
Aonde quero chegar? --- À afirmação de que não existe poesia feliz e absoluta ao mesmo tempo. Uma Humanidade contente não faz versos: vive-os apenas.
Tem o artista de se tornar o refém voluntário da cruel Literatura e suas marcas de ferro e fogo (dramas, conflitos, delírios colossais), através de uma sempre maior dedicação ao fazer poético. Caso permaneças só, ou com outra te cases, Dante, Camões, Florbelinha, José Craveirinha, Cruz e Sousa e outros --- esses dulcíssimos parasitas da nossa alma tão lusa --- vão adorar:
"Oba, mais um a implorar à Poesia que eternize sua amada!"
E ei-lo perdendo razão e sonhos mas ganhando o direito de contemplar-se intimamente! Palmas e louros!

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(1) Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a nao querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Fonte: www.bibvirt.futuro.usp.br
(Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro) - acessado em 01/09/2007.
(2) Pr. Laerte França, da Igreja Batista Memorial de Nova Iguaçu, tel. (021) 2660-3486 - ibmemorial@click21.com.br. Era onde eu levava minha filha, para futuro compromisso sério com Deus.
Hoje com dezoito anos, ela participa do Projeto Ide, aqui em Cabo Frio. Valeu portanto a convivência na Memorial!
(3) Em comunicado recente (agosto de 2007), o escritor participa que foi expulso do Recanto das Letras, tendo portanto todos os textos deletados.
(4) Inumeráveis foram e são meus pecados, erros imbecis, enganos inconsertáveis, topadas cavalares, homéricas jumentadas, falhas inomináveis, entulhos de egoísmos --- muito além do acima descrito.
Consolos:a) não tombei sozinho: arrastou-me a Humanidade.b) todos erraram, erram e errarão --- e só se darão conta dias, meses ou até anos após o erro.c) para reaver a humana dignidade, procuro fazer o bem, ser eqüânime, não prejudicar ninguém... E tento ser humilde --- dificílima missão!


Viagem Cabo Frio --- Nova Iguaçu, manhã de 11/01/2007.
Modificado 52 vezes até 26/01/2008.

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