domingo, 7 de fevereiro de 2010

Carrascos e Mártires

Ao tenente-coronel Getúlio Gaio, in memoriam.
Aos que em mim confiaram, relatando tudo.


Continuo avesso ao militarismo, embora tenha vários sobrinhos na Polícia Militar: dois tenentes-coronéis, um major, um capitão, um subtenente, uma sargento (enfermeira) e dois soldados...)
(Todos tenras crianças, ou sequer nascidos, ao tempo do fato abaixo rememorado.)

Transcorria o ano de 1973 ou 4. Detido no Rio de Janeiro, enquanto verificavam junto a outros órgãos de repressão se eu era ou não terrorista, presenciei uma semana de luto na PMERJ, e por acaso a tragédia ocorreu com componentes do Regimento. Vi que qualquer dor é igualzinha.

Num transporte de presos comuns --- assaltantes, estupradores, assassinos, maníacos sexuais, pedófilos --- do Presídio Hélio Gomes para a Ilha Grande, já na serra dos abismos, um caminhão-choque derrapou. Tudo devido à pista orvalhada e à cerração espessa. Faltaram freios, sobrou perícia: por um triz o veículo não deslizou precipício abaixo.

No entanto tombou, espalhando na pista todos os 24 soldados, que cinco morreram na hora e o sexto ficou tetraplégico, falecendo mais tarde no hospital).
Cada um quebrou seu algo: um braço, uma perna, dois dedos... Teve um que perdeu a orelha. Outro, meia mão.
O tenente e o subtenente, que comandavam a operação, mais o motorista, ilesos, lideravam o socorro.
Motoristas particulares colaboravam espontaneamente, num frenesi geral, surgindo daí as lideranças mais inesperadas.
Em minutos os outros quatro caminhões-choque do comboio pararam perto, assumindo o controle da situação e agradecendo a ajuda recebida. Que continuou.

E a dezenas de quilômetros dali, um oficial novo no Regimento, o capitão Getúlio Fiquelscherer Gaio, acionou a tropa reserva, embarcando-a e conduzindo-a até lá, levando alguns tenentes voluntários, os dois enfermeiros de plantão e um médico (preso político, que esperava aquela operação de paz desde o Princípio dos Séculos - hierático, circunspecto, imaculado, maleta na mão).
Tudo em um segundo.

Soubemos dos acontecimentos quase na mesma hora, embora "incomunicáveis" nas celas, a guarda reforçada, os telefonemas suspensos, o imperioso e cauteloso silêncio.
O Regimento entrou em rigorosa prontidão, durando
dois dias.

A imprensa também chegou junto, fotografando, filmando, fazendo perguntas e tentanto entrevistas, incentivando denúncias: Os freios do caminhão? O estado geral da frota? A rigidez das escalas? Os critérios das escoltas? A qualidade da comida? A semi-escravidão dos cavalarianos? Etc, etc. Ninguém (da tropa) pôde nem ousou falar.

Os porta-vozes oficiais passaram então a versão mar-de-rosas usual. Armamento sempre à mostra. Entrevistas coletivas rodeadas de fardas azuis, feições carrancudas e gestos bruscos. Os oficiais da Cavalaria a caráter, botas de cano longo, chicotes em punho, esporas reluzentes, um ar impaciente. Arrogantes.

Até que um cabo, o LCC, nos fundos do amplo quartel, na mal iluminada ala cavalariça, revelou alguns problemas, seguido de outro cabo e três soldados, perante os repórteres, cujos jornais não puderam publicar nada. Um jornalista

E o cabo executaram-no a granadas, num matagal do
Campo dos Afonsos, numa súbita noite de luar.(1) Vinte e nove anos. Casado, filha pequena.
As estrelas assistiram a tudo e aguardaram, eternas.

À noite, furtivamente, percebi um rude sentinela chorando. Na noite seguinte, outro.

Surpreendente mesmo foi a semana iniciante: o silêncio, as cabeças baixas, as bandeiras a meio-mastro, e --- o mais impressionante --- as formaturas sem a leitura do boletim, sem revistas à tropa, sem qualquer hino, sem nada; apenas se pronunciava os nomes completos dos seis desventurados. (Quebra-se nestes casos uma tradição de duzentos anos.)

A exceção foi o desfile, que, embora regular como os outonos, as ninhadas de garças selvagens, as auroras e os rios, trouxe algo novo.
E essa exceção, esse novo, se percebia na própria formatura: a banda, embora em forma, calada, imóvel, hirta; o bombo, apenas ele produzia uma batida rítmica que sublimava as tristezas desfilantes. Jamais julguei houvesse tanto sentimento num som, num som somente. Cortava o coração. Travava a voz. Três dias.

@@@

Confirmei por fontes limpas que não houve vingança, desforra ou represália alguma contra os treze ou quinze detentos, conduzidos em segurança até a Ilha Grande. E forte era a revolta da soldadesca, insubmissa pela fatalidade, as condições de trabalho e a mordaça moral.

Bastaram a voz e a atitude decididas do cap Gaio, fazendo-os mirar objetivos mais altos:
--- A PM não faz greve, a PM faz revolução!! (2)

Sua postura tornou absoluto o sucesso da missão:
sem falhas, atropelos, injustiças ou arbitrariedades.

E - simples impressão ou não - a cordialidade entre os presos (comuns, políticos, militares e da polícia civil) e a tropa aumentou naquele período, percebendo a rede de solidariedade naturalmente formada.

O comandante caiu. O Comando Geral balançou: seguraram-no os colegas generais de Brasília, que intercederam junto ao governador Antônio de Pádua Chagas Freitas.

Homegeados com as mais altas condecorações (entregues em cerimônia solene aos seus familiares), sepultados com honras militares no Mausoléu da Polícia Militar e promovidos post mortem, repousam os soldados:
Macedo
Pompeu
Salles
Valdemar
Walter ("Traça")
William ("Jacaré").

...Não mais as prontidões, a guarda, a escolta de valores, a instrução ("Pisa na barata", "Trenzinho"), as escalas peremptórias: cumprindo ordens superiores, recolheram-se ao alojamento celeste. Escaparam para
as Estrelas. Ou, no jargão policial-militar, arribaram.

Uma cruz marca o sítio, com sua sina de signo trágico: encoberta aos poucos pelo capim alto e os arbustos crescentes, fez-se pouso de andorinhas
travessas e vereda de indiferentes aragens. Uma
homenagem às avessas. (3)



Notas:
(1) O cb Jackson, o “Dez pras Duas”, prestou um depoimento semiconfiável, porque vindo de um pobre-diabo infeliz, já nascido bêbado e posteriormente expulso da PM. Um homem fora dos planos de Deus e dos homens.
Seu testemunho confuso se encaixou somente no do cb Freitas, o “Titio”, reconhecido como um fofoqueiro de marca maior. (Seu epíteto: "Os olhos e os ouvidos do comandante").

E aí, como ficamos?
Silenciaram mesmo o LCC?
Ou foi realmente o botijão de gás que explodiu, em sua casa humilde (mas própria!) no Conjunto Dom Bosco, em Marapicu, distante bairro de Nova Iguaçu, milpedaçando-o?
Ou se salvaram o cabo, a mulher e a menina, correndo para a
rua (ele bem à frente...), enquanto o botijão, em vez de explodir, apenas chiava e pegava fogo --- logo extinto?
(Há ainda a versão do próprio LCC, já num batalhão do interior, desmentindo bem-humorado as declarações daqueles dois simpáticos patifes...)

(2) Três meses depois, já livre (consideraram-me um "inocente útil"), soube que cercaram o Palácio da Cidade,
imprensando o prefeito. Erraram de palácio, sim: seria o Palácio Laranjeiras --- cujo governador, inteligentemente, concedeu logo 50% de aumento.
Entendi a lição. Foi quando me decidi pela luta.

(3) Acha-se este texto ainda incompleto e rústico. Cipoal medonho. Curral sem porteiras de ingenuidades melodramáticas. Palavras pegas a laço nos pampas da memória. Mero rascunho deletável --- literário demais. Nem como testemunho presta.)

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