domingo, 7 de fevereiro de 2010

Oração de um Náufrago

Há alguns anos, após grande enchente em Buenos Aires, na Argentina, um anônimo escreveu isto:


Começar de Novo
Eu tinha medo da escuridão
Até que as noites se fizeram longas e sem luz.
Eu não resistia ao frio facilmente
Até passar a noite molhado numa laje.
Eu tinha medo dos mortos
Até ter que dormir num cemitério.
Eu tinha rejeição por quem era de Buenos Aires
Até que me deram abrigo e alimento.
Eu tinha aversão a judeus
Até fornecerem remédios aos meus filhos.
Eu adorava exibir minha jaqueta nova
Até dá-la a um garoto com hipotermia.
Eu escolhia cuidadosamente a minha comida
Até que tive fome.
Eu desconfiava das pessoas negras
Até que um braço forte me tirou da água.
Eu achava que tinha visto muita coisa
Até ver meu povo perambulando sem rumo pelas ruas.
Eu não gostava do cachorro do meu vizinho
Até a noite em que o ouvi ganindo até se afogar.
Eu não lembrava os idosos
Até participar dos resgates.
Eu não sabia cozinhar
Até ter na minha frente uma panela com arroz e crianças com fome.
Eu achava que a minha casa era mais importante que as outras
Até ver todas cobertas pelas águas.
Eu tinha orgulho do meu nome e sobrenome
Até nos tornarmos todos seres anônimos.
Eu criticava a bagunça dos estudantes
Até que eles, às centenas, estenderam-nos suas mãos solidárias.
Eu tinha segurança absoluta de como seriam meus próximos anos
Agora nem tanto.
Eu convivia com a fina classe política
Mas agora espero que a correnteza a tenha levado embora.
Eu não lembrava o nome de todos os Estados
Agora guardo cada um no coração...

Eu não tinha boa memória,
Talvez por isso não me lembre de todo mundo,
Mas empenharei o que me resta de vida
para agradecer a todos.

Eu não te conhecia,
Agora és meu irmão.
Separava-nos um rio
Agora somos parte dele.

É de manhã, já saiu o sol e não faz tanto frio...
Graças a Deus vamos começar de novo!
(Anônimo)


(Publicado no Mural em 30/11/08 pela escritora,
editora e designer Kate Weiss )

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