domingo, 7 de fevereiro de 2010

Os milhões de Fernandos Pessoas

Espero cheguem a ti, ligeiras, as aflições abaixo:
Dá graças à tua juventude, a partir da qual podes te corrigir ou errar menos (ou acertar mais!), conforme tua sabedoria, bom-senso e experiência.
Tua infelicidade atual é atual, e passará; tuas faltas, nem tão graves assim, como as expões, se comporão em acertos... Angustia-te menos.
Sofre mas convicto de que é devido a reveses da vida, e não só a erros teus que te castigam.
Leiamos Camões:
"Erros meus, má fortuna e amor ardente (1)
Em minha perdição se conjuraram..."

Belíssimos versos, não? Só que inaplicáveis a ti, pois:
a) o gênio do Poeta elevou ao máximo a transfiguração lírica do real (vale dizer, dos seus sofrimentos, comuns a todos nós);
b) O "erros meus", admita-se, depõe contra ti --- num suposto tribunal do júri espiritual; mas e a "má fortuna" e o "amor ardente", que significam o destino e os sentimentos, sobre os quais não temos poder algum?! Em que artigos de lei esse severo fórum te enquadraria? Nenhum. Pois todos nos achamos sujeitos à "má fortuna" e ao "amor ardente"...
Minimiza pois teus sentimentos de culpa, teus remorsos, tua obrumbral noção de um "castigo justo e merecido". Não te submetas a julgamento algum! És livre para falhar e te emendares!
Não crês em Deus? Ótimo! Ou crês Nele duma forma bem especial, só tua, que exclua Céu e Inferno? Sabe então que milhões de fernandos pessoas olhamos não para um Firmamento redentor, porém para a Natureza toda, panteisticamente. E a defendemos e protegemos e, com ela, quase dialogamos.
Mira por outro ângulo: católicos e evangélicos se crêem ungidos, salvos, e por isso nos intimidam com penas eternas, em Seu imurmurável nome.
...Mas se seu deus deles é misericordioso, por que puniria os humanos que furtassem, roubassem, estuprassem, matassem?! Esse "bom" deus, penso, não deixaria o homem pecar e se tornar indigno dos Céus e candidato favorito às Grandes Chamas, concordas?
Então aí já se nota, jovem, a falácia dos que se proclamam Seus profetas e pecam tanto ou mais que nós e nos ameaçam ainda, desde criancinhas, nas ruas, nos lares, à mesa, nas escolas, nas praças, nas igrejas, com as sentenças clássicas:
"Deus está vendo..."
"Deus não gosta disso..."
"Viu? Papai-do-Céu castigou..."
"Bem que eu avisei..." etc.

Que deus pérfido é esse deles, não?, que cria o Homem para a crueldade, as guerras, os assassinatos em massa --- e não só na "Alemanha de Hitler", como na "Roma dos Césares", no "Império Português", no "Vietname de Richard Nixon e Lyndon Johnson" (vê os filmes "Corações e Mentes" e "Platoon!"), no "Afeganistão e Iraque de George Bush"...
Fico aí com Omar Khayyám, poeta persa, que citarei em breve.

Fernando Pessoa desmascarou esse deus, de igual para igual, em vários poemas, ridicularizando-o até (que blasfêmia!). Mostra-o como um ente comum, mera invenção atemorizante.
Todavia se manteve ajoelhado, absorto poeticamente durante seus curtos 47 segundos, numa contrição e comunhão comoventes com o seu Deus.
Acalma-te portanto, sossega teu aflito interior riquíssimo.
Tens acaso culpa dos infortúnios do Mundo, da eterna partida de pessoas impartíveis e das ilusões de amor que deságuam na solidão, no silêncio, nos dramáticos braços do abandono? Das inimizades aparentes ou falsos apreços?
És nada mais que autor e réu, agressor e agredido, e muito mais inocente do que vislumbra teu inspirado espírito. Conduze teu destino sem imposições, sem onipresentes deuses ou manhosas sugestões alheias...

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Misteriosa, a alma. Ao fechar este grotesco esboço, envolveu-me um sentimento luminoso, de missão cumprida, de porcentagem bem administrada, seguido de tremores e discretas lágrimas.
O idioma grego nos legou um termo clássico para tal ocorrência, tão imortal quanto a Grécia: "catarse". Porém eu, brasileiro, simplifico: "desabafo", "alma lavada".
Sim, porque não escrevi toda uma viagem (quase cinco horas) apenas para ti: escrevi de fato para mim, posto que iniciei a escritura para outrem.
Enfim confesso: errei, magoei, entristeci profundamente famílias inteiras devido a atitudes inconseqüentes e imaturas, oriundas de traumas e frustrações e complexos, na juventude.
Aos 42 anos, casei-me. E eis o inesperado: mudei, amadureci, fiz concursos públicos, melhorei. Bom marido, bom pai, bom genro, bom vizinho...
Detalhe: não desposei a garota dos meus sonhos. Mas tenho esposa e filha felizes, realizando-se, progredindo, aproveitando a Cidade, seja nas caminhadas na orla, nas praias, nas reuniões, nos passeios, na contemplação do mar, dos monumentos, do multiverde e das delicadas florações.
Há nisso tudo alguma lição para ti?

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Quanto às editoras, ignora-as: relembra Luís de Camões, Marcel Proust, James Joyce e tantos brasileiros recusados e hoje tão disputados...
Cuida mais (ou só) da tua Obra. Reescreve-a dez, vinte, cinqüenta vezes, sempre aprimorando teus conhecimentos técnicos e teóricos sobre a Literatura e os infinitos recursos da Língua Portuguesa. E: lê os outros, lê os outros, lê os outros. Grandes ou pequenos.

Falei do "teu aflito interior riquíssimo". Falaste-me dos poemas-espinhos, que tanto te ferem quanto te e nos cativam. Pois pelo pouco que te li, indago: onde a aflição, a alma, a riqueza?! As letras incandescentes, puro arame farpado cercando nossas almas-de-gado, a grama e a água corrente? A suprema angústia de Franz Kafka, Albert Camus e Fiódor Dostoiévski, o fervor trêmulo de Euclides da Cunha, a abissalidade de João da Cruz e Sousa? O gênio de Joaquim Machado de Assis? Enfim, onde as miríades de composições? Por que as tiraste do site?(3)

Aparta-te dos bate-papos simples, supérfluos e vazios do Mural e do Fórum, onde se perde um tempo irretornável: polemiza menos, afasta-te das amenidades tão deliciosas quanto frívolas e fugazes... E inicia a solitária subida, que só tu podes, à poderosa, imensa, dolorosa, musical Montanha da dor original de que nos fala Rainer Maria Rilke nas "Elegias de Duíno".
Decide teu futuro: superficialmente polêmico ou admiravelmente poético?

Pressinto a proximidade de um grande escritor. Depende de vários fatores, como:
1) a solução de tua vida sentimental: casas-te ou não com a srta. Y? (Se te casares, selarás o fim dos sofrimentos amorosos, da solidão, e, em conseqüência, da tua fonte atual de inspiração).
2) casas-te com outra moça e continuas te inspirando em Y; boa solução para a poesia, que ganhará em angústia e belos versos.
3) casas-te com Y e, acalmadas as paixões pela convivência diária, te dediques, com o mesmo fervor, a mesma reverência, à Arte --- a outros e igualmente belos assuntos.

Aonde quero chegar? --- À afirmação de que não existe poesia feliz e absoluta ao mesmo tempo. Uma Humanidade contente não faz versos: vive-os apenas.
Tem o artista de se tornar o refém voluntário da cruel Literatura e suas marcas de ferro e fogo (dramas, conflitos, delírios colossais), através de uma sempre maior dedicação ao fazer poético.
Caso permaneças só, ou com outra te cases, Dante, Camões, Florbelinha, José Craveirinha, Cruz e Sousa e outros --- esses dulcíssimos parasitas da nossa alma tão lusa --- vão adorar:
"Oba, mais um a implorar à Poesia que eternize sua amada!"
E ei-lo perdendo razão e sonhos mas ganhando o direito de contemplar-se intimamente! Palmas e louros!

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(1) Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a nao querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

Fonte (de onde tirei o soneto acima): www.bibvirt.futuro.usp.br
(Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro). Acesso: 01/09/2007.

(2) Em comunicado recente (agosto de 2007), o escritor participa que foi expulso do Recanto das Letras, tendo portanto todos os textos deletados.

Viagem Cabo Frio --- Nova Iguaçu, manhã de 11/01/2007.

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