domingo, 7 de fevereiro de 2010

O encanto místico de uma literatura multissecular (Monografia)

(reflexões sobre um conto de Marina Colasanti)


Por Jô Siqueira Souza
(aluno do curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil)

Monografia final apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à conclusão da Especialização em Literatura Infantil.

Co-orientadores virtuais:
Professora Doutora Ingedore Villaça Coch
Professor Pós-Doutor José Luiz Fiorin

UFRJ / Faculdade de Letras
Segundo semestre / 2008


Dedico
A

Agradecimentos:
Cláudia Simone Alvino Cruz
Doc de Oliveira Costa
Fabiane Oliveira Gonçalves
Paula Patrícia de Oliveira


Sinopse
A proposta desta pesquisa concentra-se em No dorso da funda duna, conto onde Marina Colasanti exercita, mais uma vez e tão bem, a sua poderosa arte. Fundamenta-se esta tese, portanto, numa leitura da obra dela, como um todo, e daquele conto, em particular, sob o ponto de vista estilístico e semântico.
Logo, propõe este trabalho de pós-graduação uma viagem na variada temática colasantina, enfocando e esclarecendo situações-limite que nos atingem como raios de lua no deserto. Propõe análises sucintas, tendo como objetivo-síntese um estudo aprofundado da obra daquela escritora.


Sumário:
Introdução


Capítulo 1 - Conceitos Essenciais
1.1 - Os Gêneros Textuais
1.2 - Os Tipos Textuais


Capítulo 2 - O Texto Narrativo
2.1 - Enredo, fatos, tempo, espaço
2.2 - O foco narrativo
2.2.1 - Características dos personagens
2.2.2 - Voo ou naufrágio? Desmontando a farsa
2.2.3 - Olhar maior sobre a narratividade


Capítulo 3 - Panvisão (conceitos de leitura e escrita)


Capítulo 4 - Fundamentos Teóricos da Literatura
4.1 - Discutindo Conceitos e Métodos
4.2 - Da Literatura e do Ódio Oficial
4.3 - Do adjetivo "infantil"
4.4 - Do Maravilhoso
4.5 - Da Atemporalidade Semântica


Capítulo 5 – Conclusões


Referências Bibliográficas
6.1 - Ficção
6.2 - Teoria
6.3 - Revistas
6.4 - Artigos diversos
6.5 - Outras mídias
6.6 - Notas


1 - Introdução
Procurarei enfocar as produções do ponto de vista de sua excepcional riqueza literária.
A ponte intertextual lançada entre diversas escrituras dela prima pela arte, gestos e movimentos, muito além das imagens convencionais, adapta-as ao público mirim, que se apropria deliciosamente desse discurso não mais alheio, porém inerente às suas expectativas de vida e prazer.
O corpus literário deste trabalho objetiva articular os pontos de referência da literatura, a saber, autor, leitor, crítico e obra.

a) Autor:
Marina Colasanti (1938) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão.
Dentre outros, escreveu: A morada do ser, A nova mulher, Aqui entre nós, Contos de amor rasgados, E por falar em amor, Eu sozinha, Gargantas abertas, Intimidade pública, Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado e Zooilógico.
Escritos para crianças, ela tem: Doze reis e a moça do labirinto de vento e Uma idéia toda azul.
Colabora, também, em revistas femininas e é constantemente convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. Casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Algumas injustiças:
- não tem ainda nenhuma obra sua em filme ou minissérie de TV
- ainda não foi eleita para a Academia Brasileira de Letras
- ainda não ganhou o Prêmio Hans Christian Andersen (o Nobel da Literatura Infantil), já outorgado a Lygia Bojunga Nunes e Ana Maria Machado
- ainda não ganhou o Prêmio Nobel
- ainda não foi traduzida para todas as línguas do mundo.

b) Leitor:
Em contato com as narrativas de Marina Colasanti, ele fica intrigado com a ambiência medieval, a perspectiva do cânone literário (temas tratados), a proeminência da função lúdica sobre a pedagógica, a moralista e histórica... Dotado de grande sentimentalidade, assume sem o saber um tipo de receptor e um tipo de recepção usuais na leitura e enfoque da obra dessa escritora.

c) Crítico:
Entendendo-se este item como a análise literária propriamente dita, visa a possibilitar uma leitura crítica da produção ficcional daquela autora, toda ela praticamente em prosa.
O papel da crítica literária é aí, a meu ver, ressaltar o processo criativo, a produção de novos sentidos, a progressão temática, os recursos textuais empregados - propor enfim uma reflexão sobre uma das inúmeras leituras, em aberto. Reflexão essa não destituída de um competente estudo de interpretação.
Grande, exuberante é a safra marinana entre os gêneros literários atuais. E ela enfatiza, nesse processo, os traços de oralidade, o ritmo da contação de histórias, as técnicas narrativas, os diferentes discursos estéticos...
Identificamos semelhanças e diferenças entre personagens emblemáticos hodiernos, conectando a veneranda e milenar saga oriental (arábica) e a modernidade, numa confirmação de que a Literatura, como as Artes e as Ciências, segue uma sequência eterna, regular, lógica.
Este trabalho objetiva, portanto, dar relevo às seguintes “áreas temáticas ou campos de interesse” (1 - Notas, ao final) da Linguística do Texto, numa perspectiva plural:
a – Associação da leitura à produção de textos, estimulando o desenvolvimento da capacidade comunicativa.
b –Valorização do entendimento do leitor para o processo de construção de significados inerentes ao texto.
c – Facilitação do contato com grande variedade de estilos e de gêneros, visando à formação de um leitor e produtor de textos competente.
d – Análise dos aspectos dialógicos da obra focada, como o retórico, o bíblico, o metafísico e o dramático.

d) Obra:
Bibliografia de Marina Colasanti (segundo Fernanda Biagini Sá Verçosa e Andréia Guerini):
Eu sozinha. Rio de Janeiro: Record, 1968.
Nada na Manga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973.
Zooilógico. Rio de Janeiro: Nórdica, 1975.
A morada do ser. Rio de Janeiro: Record, 1978.
Uma idéia toda azul. Rio de Janeiro: Nórdica, 1979.
A nova mulher. Rio de Janeiro: Nórdica, 1980.
Mulher daqui pra frente. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981.
Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.
A menina e o arco-íris. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
E por falar em amor. Rio de Janeiro: Rocco, 1984.
O lobo e o carneiro no sonho da menina. São Paulo: Ediouro, 1985.
Uma Estrada junto ao Rio. São Paulo: Ftd, 1985.
Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
O verde brilha no poço. São Paulo: Global, 1986.
O menino que achou uma estrela. São Paulo: Global, 1988.
Um amigo para sempre. São Paulo: Quinteto, 1988.
Ofélia, a ovelha. São Paulo: Global, 1989.
Será que tem asas? São Paulo: Quinteto, 1989.
A mão na massa. Rio de Janeiro. Salamandra, 1990. Intimidade pública. Rio de Janeiro: Rocco, 1990.
Agosto 91 estávamos em Moscou. São Paulo: Melhoramentos, 1991.
Cada bicho seu capricho. São Paulo: Global, 1992.
Entre a espada e a rosa. Rio de Janeiro. Salamandra, 1992.
Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
Ana Z aonde vai você? São Paulo: Ática, 1993.
Rota de colisão. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
De mulheres sobre tudo. São Paulo: Ediouro, 1995.
O homem que não parava de crescer. São Paulo: Global, 1995.
Um amor sem palavras. São Paulo: Global, 1995.
Aqui entre nós. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
Gargantas abertas. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O leopardo é um animal delicado. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Longe como o meu querer. São Paulo: Ática, 1999.
Um espinho de marfim e outras histórias. Porto Alegre: L&PM, 1999.
Esse amor de todos nós. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
A amizade abana o rabo. São Paulo: Moderna, 2001.
Penélope manda lembranças. São Paulo: Ática 2001.
Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 2002.
A moça tecelã. São Paulo: Global, 2004.
Fragatas para terras distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004.
Fonte: www.dicionariodetradutores.ufsc.br Acesso: 02/01/2009.

e) "No dorso da funda duna"
O sol atravessava lentamente o céu. E abaixo dele, bem abaixo, um emir com sua caravana atravessava o deserto. A claridade era envolvente como um sono. Mas de repente, pelas frestas dos olhos apertados, o emir viu a figura escura de um homem recortar-se no dorso de uma duna. De um homem e de uma cabra.
Que parasse a caravana, ordenou o emir. Um homem sozinho no deserto é um homem morto.
- Mas não estou sozinho, nobre senhor - respondeu ohomem, levado à presença do emir.
E este, tendo logo pensado que uma cabra não é companhia suficiente em meio às areias, penitenciou-se no segredo da sua mente. Certamente aquele era um homem santo que vagava em penitência, e tinha a companhia da sua fé.
Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. E diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água. Em breve, a caravana partia.
O homem apertou as espirais do turbante, puxou uma ponta do pano sobre a boca, e acompanhado pela cabra recomeçou a andar.
O sol tinha refeito seu percurso muitas vezes e estava do outro lado da terra, quando um tropel de cavaleiros quase pisoteou o homem que dormia com a cabeça encostada na barriga da cabra. O primeiro cavaleiro puxou as rédeas, saltou na areia. O homem acordou num susto. O tropel parou.
- Um homem sozinho entre as dunas é um homem inútil - disse o cavaleiro, que chefiava aqueles piratas do deserto. E o convidou para que se juntasse ao bando.
Mas quando o homem recusou a oferta, acrescentando que certamente era um inútil embora não estivesse sozinho, o chefe dos piratas achou que debochava ele, e mandou que o surrassem. Sem demora e sem ruído, pois cascos não ecoam na areia, o tropel partiu.
Os ferimentos da surra há muito haviam cicatrizado, no dia em que uma caravana de peregrinos passou no seu caminho. E assim como ele a viu chegar com prazer, também os peregrinos consideraram a presença daquele homem e daquela cabra como um sinal propício, e decidiram acampar ao seu lado no dorso da duna.
Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão. Só quando ela acabou, o velho perguntou ao homem o que estava fazendo no deserto.
E o sol ainda não havia se posto, e a lua ainda não havia surgido, quando o homem começou a contar.
Havia sido um homem próspero de uma próspera cidade, uma cidade que com seus minaretes e muros surgia em meio ao deserto.
Marido de uma boa esposa, justo pai dos seus filhos, tinha sempre grãos na despensa, e a figueira junto à porta de sua casa a cada ano dava frutos. Um dia, chamado pelos negócios, havia partido em longa viagem. E ao regressar, não mais havia encontrado sua cidade. Só depois de muito indagar entendera que o deserto, soprado pelo vento, havia passado por cima dos muros, engolindo os minaretes, as casas e a figueira. Toda a sua vida estava debaixo da areia. Mas, onde, na areia? E havia começado a procurar.
- É por isso que até hoje anda no deserto? - perguntou o velho chefe da caravana.
Os dentes do homem brilharam à luz da lua que já se havia levantado.
- Ando porque ainda sou morador da minha cidade - respondeu. Inclinou-se, encostou o ouvido na areia, quedou-se atento por alguns minutos. - Há muito a encontrei - disse, erguendo-se.
Sorriu novamente. No ventre daquela duna, debaixo da caravana acampada, estavam os minaretes, as casas, a figueira. Estavam seus filhos e sua mulher. E ele podia ouvi-los a distância. Através da areia que os separava, podia ouvir os gritos dos pregões, as preces dos muezins, o riso da mulher e das crianças que certamente agora haviam crescido.
- Caminho para isso. Para estar sempre acima deles. Para escutar sua vida.
- As dunas - acrescentou - vagueiam pelo deserto. E eu vou, acompanhando a minha.
Pouco faltava para a manhã. Ao alvorecer, os peregrinos partiram.
Mas o vento tinha ouvido o relato do homem. E a próxima caravana que por ali passou já não o encontrou. A duna soprada grão a grão havia eriçado sua crista, cobrindo o homem e sua cabra como antes cobrira muros e minaretes. E abrindo caminho para eles, lentamente, até seu ventre.


Capítulo 1 - Conceitos Essenciais
1.2 - Os Gêneros Textuais
Os gêneros textuais (2 - Notas) são abundantes: anedota ou caso, assembléia, aula expositiva ou virtual, bate-papo virtual, bilhete, boletim de ocorrência, bula de remédio, cardápio de restaurante, carta comercial, carta de leitor, carta de reclamação, carta de solicitação, carta eletrônica, carta pessoal, conferência, conto, conversação espontânea, curriculum vitae, debate regrado, discurso de defesa (advocacia), edital de concurso, editorial, horóscopo, inquérito policial, instruções de uso, lista de compras, lista telefônica, notícia ou reportagem jornalística, outdoor, piada, poema, receita culinária, resenha, resumo, reunião de condomínio, romance, sermão, telefonema...
Aparentemente caóticos devido à impressão inumerável, “eles contribuem no entanto para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia”,
Nada mais necessário, portanto, que a sua conceituação correta.
Transcrevo abaixo a classificação de Mussalim (p. 35), tão didática:

“1 - Próprios para narrar: conto de fadas, conto maravilhoso, fábula, lenda, narrativa de aventura, narrativa de enigma, narrativa de ficção científica, narrativa mítica e romance.
2 - Próprios para relatar: autobiografia, biografia, diário íntimo, ensaio, perfil biográfico, relato de experiência de vida, relato de viagem, relato histórico e testemunho.
3 - Próprios para argumentar: artigos de opinião, ensaio, resenha crítica e sermão.”

1.3 - Os Tipos Textuais
Teoricamente, surgem como narração, argumentação, descrição, injunção e exposição.
Já em Azeredo (in Pauliukonis & Santos, 2006, p. 23) omite a exposição e inclui o diálogo. Para maior clareza, transcrevo o parágrafo dele:

“A enunciação se desenvolve sob cinco formas fundamentais de organização discursiva ou sequenciação textual – a que estamos chamando tipos: a narração, a descrição, a argumentação, o diálogo e a injunção.”

Acresceríamos aí a exposição, como se acha em Cilene et alii, à p. 31, id., ibid.
KOCH (2006, p. 161) expõe:

"É importante assinalar, contudo, que a concepção de gênero de Bakhtin não é estática, como poderia parecer à primeira vista. Pelo contrário, como qualquer outro produto social, ele reconhece que os gêneros estão sujeitos a mudanças."


Capítulo 2 - O Texto Narrativo
2.1 – Enredo, fatos, tempo, espaço
a) Enredo - consiste no ilogismo planejado e executado com fins literários. Uma inconsequência consciente ousada por alguém que possui uma mensagem aprisionada e necessita, sonha libertá-la no infinito interior de todos nós, seus semelhantes.
b) Fatos - são organizados de forma a apresentarem uma seqüência de começo, meio e fim. Esses elementos, para se estruturarem, necessitam de um conflito, vale dizer, um problema a ser superado pelo personagem. Ele é responsável pela tensão que organiza os fatos, criando no leitor uma expectativa relativa ao desfecho.
Na sucessão narrativa, os fatos progridem em ritmo dinâmico, prevalecendo as ações, e permanecendo as reflexões apenas como suportes delas, como uma tropa reserva. Assim, a caravana "seguia", o emir "viu" o homem, o séquito "parou"... Essa sequência se dá em um espaço e um tempo, sem dúvida. Porém são sobretudo fatos.
c) Tempo – os fatos se acham ancorados no tempo histórico, explicitamente nomeado, chegando até o narratário através dos vocábulos com que a narradora definiu o espaço: deserto, caravana, emir, peregrino...
Então conclui-se por um tempo "fora do tempo", isto é, a vida, o modus vivendi milenar dos povos da África. E por que se conclui isto, e não algo evoluído, citadino, de megalópole? Porque estamos condicionados desde os tempos pré-bíblicos a entender e assimilar que o deserto possui suas leis (dunas, ventos, oásis, habitantes imutáveis - mesmas roupas, gestos, atitudes e hábitos) desde um tempo sem conta. Colabora para isto o estilo vetusto, venerando de Marina, como nos trechos:

1 - “Assim mesmo, convidou-o a seguir viagem com eles. E diante da recusa, ordenou que se lhe dessem alguns pães e um odre de água. Em breve, a caravana partia.” (p. 16-18)

2- “Armadas as tendas, acesos os fogos, o chefe da caravana convidou o homem a comer. Os peregrinos sentaram-se ao redor, a comida passou de mão em mão.” (p. 41-44)

Enfim, servindo-me de um trecho de Terra & Nicola (2006, p. 85), explico melhor:

"Embora a época em que ocorreram os fatos não esteja especificada, a presença de elementos gramaticais como verbos, advérbios e locuções adverbiais indica ao interlocutor o tempo dos acontecimentos narrados."

É, resumindo, a passarela cronológica onde desfilam os acontecimentos, que o narrador procura situar num tempo combinado, no qual se passa a história.
O tempo do conto em análise é cronológico, linear, pois transcorre segundo a ordem natural dos fatos, do começo para o final, podendo ser medido em horas, dias, meses e anos.
d) Espaço - quanto ao espaço, o lugar, o ambiente (um superdeserto), caracterizam-no inúmeros termos e expressões típicas, peculiares, já a partir do título (e continuando: caravana, odre, tropel, cascos, areias, peregrinos, tendas, acampar...).
O espaço nos remete ao lugar onde se passa a ação, mantendo com as personagens uma indissociável relação de interação. Pode ele, dessa forma, influenciar suas atitudes ou ser transformado por elas. Geograficamente, ele retrata o deserto, onde ocorrem os eventos, obedecendo à movimentação dos actantes. As descrições desse espaço entremeiam as ações do enredo, ampliando-as.
O espaço social é aberto, contribuindo para a intensificação dos conflitos e grandes movimentações humanas e da natureza (caravanas que vão e vêm, tempestades de areia, dunas semoventes...).
O local (ambiente físico) onde os fatos acontecem implica na presença de elementos naturais, que o formam e modificam, contribuindo para o peculiar final: o vento auxilia o andarilho a penetrar na "funda duna", onde se acha a sua cidade e todos que ele amará para sempre.
E aí ja advem o estranhamento: enquanto todos procuram safar-se daquele inferno, atingindo as bordas verdejantes da civilização, da fartura, ao homem lhe basta seguir uma duna. E caminhar sem rumo, com uma mera cabra (não um camelo ou um cavalo).
Enquanto todos (se) "vão", ele (se) "volta", e permanece: permanece imóvel no espaço e no tempo do conto, em oposição aos demais. Enquanto os outros seguem a caminho de suas terras prometidas visíveis, físicas, palpáveis, ele para.
Todos sonham, querem algo. Nem tanto realidade, nem tanto fantasia. Apenas sonhos, anelos, desejos, ideais diferentes. (Daí nasce o conflito.)
Essas terras prometidas, embora reais, são também simbólicas, pois se pode metamorfoseá-las assim:
1 - o emir e sua gente, que não se dirigiam a nenhuma miragem, mas a algum lugar real, um negócio grande, uma solenidade (coroação real, recebimento de honrarias...);
2 - os ladrões, que se dedicavam a saques, a pilhagens, almejando com isto a "terra prometida" da prosperidade fácil e duradoura - ilusão pura, claro, mas de ilusões vivemos todos...
3 - os peregrinos, que buscavam uma "terra prometida" espiritual, admito - fundeada porém num lugar físico (Meca, por exemplo).
Já o homem, profeta místico, buscava sua “terra prometida” sob a Terra, num simbolismo contrariador do senso comum, com uma razão só vitoriosa no desfecho final.

2.2 - Foco narrativo
Socorro-me aqui da definição de Lígia Chiappini M. Leite (apud Mussalim, 2004, p. 52), esplendidamente essencializada por esta última:

“Eis os diferentes tipos de narrador encontrados na obra literária: o narrador onisciente, o narrador-testemunha, o narrador-protagonista, o monólogo interior e o fluxo de consciência.
Há portanto várias formas de se contar uma história, prevalecendo sempre as complexidades do foco narrativo (ponto de vista).
O narrador é de terceira pessoa, portanto onisciente. Neste tipo de narração predominam os verbos e pronomes de terceira pessoa.”

Ora, não sendo a contadora da história (Marina) personagem da narrativa, não se classifica como narradora-protagonista. E mais: como ela não se posiciona diante dos fatos, não possui qualquer intencionalidade crítica, classificando-se portanto como narradora onisciente neutra.

2.2.1 - Características dos personagens
O personagem principal é plano, mantendo as mesmas características no decorrer da narrativa: perambula pelo deserto, acompanhando "sua" duna, obsecadamente.
Em diferentes situações, ele:
- foi acolhido pelo emir e sua caravana, que o convidaram a se juntar a eles, permanecendo porém imutável em seu fadário nômade;
- foi surrado pelos salteadores, e sequer se revoltou ou buscou vingança, embora isso fosse possível via terceiros.
Logo, seu caráter não se modifica durante o rumo dos acontecimentos - alguns benfazejos, outros maléficos - permanecendo psicologicamente estacionário em toda a trama.
Os demais personagens se caracterizam pela passância furtiva pelas plagas letais, em atônita odisseia. Des-destinos, imersos todos numa solidão vazia e impercebível, desertos de si. Tróias sem muralhas.
Já o sonhador, esse não: aroma destinal, raízes brutas, ficância; ora ouvido, ora prece, ora espanto --- mas sempre paz ante o milagre das vozes, dos risos, do subsolo em música.
Nunca houve dilemas nem dúvidas: confrontado com seu passado agora subterrâneo, o homem descartava inapelavelmente quaisquer gentilezas e chances que lhe ofereciam, assumindo a responsabilidade por essa estranha e admirável escolha: seguir seu destino de duna da Duna.

2.2.2 – Voo ou naufrágio? Desmontando a farsa
Bem entendido, farsa no sentido de fingimento, ficção, fantasia, alta criação literária. Uma farsa elegante.
O conto é uma versão “light” do relato bíblico; com efeito, na Bíblia o dócil, humilde e corajoso profeta João Batista é preso e decapitado, por ordem do nefasto rei Herodes. Ele que, em vida, anunciava, batizava, descortinava portais eternos em nome Daquele que viria; que seduzia, acenava com a redenção aos que cressem... Em suma: o bom mercador, o comerciante não de bens, mas do Bem.
Aí vem Marina lightizar tal relato, tal vida, por um escapismo literário, eufemísmico, que se conclui pelo mistério tremendo da Duna que se abre maternalmente, recolhendo o neo-João, antes que ele acabe perdendo (de novo) a cabeça sobre a Terra.
Suas multidões, seu rebanho, seu Jesus se movem sob o chão. Sacrilégio? Absurdo? A ti, sublime leitor, se assim pensares, responderei contrito com um verso khayyamiano:

“Tens defeitos maiores”. (3)

“Meu reino não é deste mundo”: poder-se-ia respeitosamente aplicar ao João marinano, agasalhado enfim pela Mãe-duna, este versículo. De fato ele transitou, habitou no deserto, conviveu com seres que jamais se aprofundaram nas razões da sua estranha permanência numa região tão hostil - quanto mais na sua suposta mensagem de fé no futuro...
Ninguém se dignou a interpretar a possível lucidez e razão desse João. Só o idoso chefe da caravana que, por curiosidade – sem portanto qualquer intenção edificante - indaga a respeito.
Deus realmente escreve certo por linhas tortas: pois aquele encontro fê-lo narrar-se, expor-se, socializar seu destino - e foi o quanto bastou para que o vento, sob as ordens do misericordioso Allah, solucionasse o problema - ventando.
Isto sem contar com o derradeiro milagre da história: nenhum vivente o vê descendo ao fundo da duna; foi portanto uma vida, uma passagem pela terra sem ser notado, sentido, pranteado ou exaltado. Fisicamente visível e espiritualmente invisível, ele passa, só passa, rumo à Felicidade.
Ninguém contextualizou a filosofia pura de seu discurso de esperança na vida, ninguém. Profeta do silêncio e do segredo, antivoz do nada, sonho cantante, retirou-se imperceptível. Ainda bem. Salvou todo o seu povo interior.
...E questionará ainda o suave locutário: “Que sina triste! Não seria melhor, mais pomposo se, ao final, a narradora tivesse promovido uma descida-em-triunfo, apoteótica, vitrinal?”
Respondo ao percuciente e impressionável interpretador: “Já pensaste que teu final subverteria crenças e atitudes, mudando o foco mental do Paraíso, cuja localização seria não mais nas alturas, entre as estrelas, mas logo abaixo de nós?"
E aqueles piratas, o chefe deles surrando mais e mais gente, obrigando o povo a cavar fundo na duna, nas dunas todas, em busca de todas as riquezas que eles já buscam e arrebatam na superfície? Afora as gafanhotais corjas que se juntariam aos malfeitores, tornando universal a ânsia de tesouros fáceis, ou pelo menos certos.
E mais te digo, meu tão fiel narratário: além de prata e de ouro, não uma, mas mil multidões unânimes e convictas escavariam a Terra de um lado a outro, em busca do Paraíso, da Eternidade feliz...
Ecologica e ecumenicamente o conto está, salvo engano, correto.
...E aí ja advém o estranhamento: enquanto todos procuram safar-se daquele inferno, atingindo as bordas verdejantes da civilização, da fartura, ao homem lhe basta seguir uma duna. E caminhar sem rumo, com uma mera cabra (não um camelo ou um cavalo).
Enquanto todos (se) "vão", ele (se) "volta", e permanece: permanece imóvel no espaço e no tempo do conto, em oposição aos demais. Enquanto os outros seguem a caminho de suas terras prometidas visíveis, físicas, palpáveis, ele para.
Todos sonham, querem algo. Nem tanto realidade, nem tanto fantasia. Apenas sonhos, anelos, desejos, ideais diferentes. (Daí nasce o conflito.)
Essas terras prometidas, embora reais, são também simbólicas, pois se pode metamorfoseá-las assim:
1 - o emir e sua gente, que não se dirigiam a nenhuma miragem, mas a algum lugar real, um negócio grande, uma solenidade (coroação real, recebimento de honrarias...);
2 - os ladrões, que se dedicavam a saques, a pilhagens, almejando com isto a "terra prometida" da prosperidade fácil e duradoura - ilusão pura, claro, mas de ilusões vivemos todos...
3 - os peregrinos, que buscavam uma "terra prometida" espiritual, admito - fundeada porém num lugar físico (Meca, por exemplo).
Ja o homem, profeta místico, buscava sua “terra prometida” sob a Terra, num simbolismo contrariador do senso comum, com uma razão só vitoriosa no desfecho final.

Todas as regiões do Planeta são férteis em contos populares. Marina pode ter-se valido de alguma versão onde algum mendigo ou miserável sem história, razão ou juízo percorria sem cessar (e sem sentido) o deserto, e que - louco - foi ao encontro da morte nalguma tempestade de areia, sendo a sua não-história “escrita” pelo povo.
Ou que por fatalidade a tempestade o colheu, ambos involuntariamente.
Ou que vagava, contava histórias e sumiu, abrindo espaço para especulações fantasiosas do povo.
Ou não passa de uma miragem de um emir sonolento que, julgando visualizar um viajante perdido, e não o tendo salvo, condoeu-se de oníricos remorsos, sonhando o conto e seu final feliz. Marina “apenas” interpretou tal sonho.
De qualquer forma, trata-se de uma parábola, uma apologia, uma alegoria, um enigma, um paradoxo dos bons.

2.2.3 - Olhar maior sobre a narratividade
A investigação teórica se vale do instrumental analítico para captar e detalhar o interesse do leitor infantil, revelando todo um universo paralelo: editoras, "marketing", apoio governamental a autores infanto-juvenis...
Contra estas manobras, temos bastantes obras direcionadas a crianças e jovens, que, reduplicando o jogo escritor-leitor, procuram formar e valorizar o leitor-mirim; leitor que constrói, pelo jogo de suas primeiras palavras e imagens literárias, um mundo diferente da massificação cultural que a televisão, por exemplo, tanto facilita.
Essa valorização se concretiza satisfatoriamente, seja por recursos poemáticos, seja pela linguagem gestual, escrita ou por ambas.
Os campos temáticos abordados por Marina correspondem, grosso modo, ao conjunto de idéias, veículo dos pressupostos teóricos subjacentes a leituras críticas de obras.
A escritura, o tratamento temático, a modelagem actancial comprovam seus esforços para conduzir ao castelo perfeito a carruagem mágica das palavras. Ela retoma, assim, a tradição do fantástico, acrescentando-lhe novos significados, formas, usos e estratégias.
As referências (pontos de ligação) da história com o deserto unânime, literariamente falando, são delineadas por falas mais sugeridas que enunciadas.
Ela não nos apresenta ou impinge uma imagem idealizada da rica cultura oriental: não se notam aí a presença de haréns, Aladins, Sheerazades ou Califas I, II ou III...
E nem reinventa novas roupagens narrativas; trabalha sobre as estruturas formais, tradicionais, amplamente aceitas do conto.
Os vocábulos-flores bartheanos abaixo foram, sem o saber, a ela ofertados:

"Se [o escritor] renuncia à liberação de uma nova linguagem literária, pode pelo menos valorizar a antiga, carregá-la de intenções, de preciosismos, de esplendores, de arcaísmos, criar uma língua rica e mortal." (2004:63)


Capítulo 3 – Panvisão (conceitos de leitura e escrita)
Capítulo desenvolvido a partir do Módulo “A Cena Escolar Brasileira”, ministrado pelas professoras Leonor Werneck dos Santos e Regina Gomes.
a) Etapas de leitura: Pré-textual, Textual e Pós-textual
b) Estágios de leitura: Descrição, Análise, Interpretação e Julgamento
c) Conhecimentos prévios - reportam-se a aspectos textuais, lingüísticos, intertextuais, contextuais, interacionais e conhecimento de mundo.
d) Tipologias de texto: Narração, Descrição, Injunção, Exposição e Argumentação
e) Gêneros textuais: compõem-se de estrutura composicional, papel social e marcas lingüísticas.

A literatura se impregna de linguagem, de amplos significados; leva as coisas aos extremos, contradizendo muitas vezes outras formas de pensar, vale dizer, outras faces do Abismo. Daí eu ter falado alhures (Cap 2 - 2.1- Enredo) na "inconseqüência consciente" do artista.
Cabem, aí, os ditos populares, as sentenças de fácil assimilação pelos usuários: os estereótipos. Estereótipos são fórmulas já consagradas nos códigos da língua, apresentando-se em expressões que se tornaram parte do discurso do senso comum, tais como "farinha do mesmo saco", "com o rabo entre as pernas", "tempestade em copo dágua", "tal pai, tal filho" etc.
Essas frases feitas, cunhadas durante séculos pela sabedoria popular, desenvolvem a percepção dos aspectos linguísticos, das marcas da linguagem oral na escrita e dos marcadores conversacionais. E adequam a linguagem às situações inerentes à comunicação. Ajudam enfim a pensar pela palavra, seja escrita ou falada. Esse patrimônio inconsciente, regiamente repartido entre milhões de falas (vozes), transforma simples sons numa grande família léxica.
A literatura infanto-juvenil serve-se abundantemente delas, com real proveito e efeito estético.
O ato de ler leva o usuário a utilizar seus conhecimentos prévios para elaborar hipóteses, estimulando-o a observar os aspectos linguísticos do texto artístico, sede de intensa poesia.
A produção escrita é vista, portanto, como um processo, do qual fazem parte as etapas de planejamento, de avaliação e de reescrita. Esse processo visa a captar e desenvolver, no leitor, habilidades de empregar mecanismos de produção de sentido capazes de expressar intencionalidade e de construir relações significativas dentro de diversas modalidades textuais. Almeja transformá-lo, enfim, num leitor crítico, que nunca mais faça uma leitura pela leitura.
Por oportuno, cito José Luiz Fiorin:

"Nosso objetivo não é apresentar a teoria da análise do discurso, mas um dos projetos teóricos de análise discursiva que hoje se desenvolvem." (2008:10)

Para chegar a tal compreensão, deve o leitor crítico desenvolver a observação, a reflexão e a capacidade de formalizar os conceitos linguísticos em questão, percorrendo o passo a passo da elaboração do texto. Precisa ele, a rigor, refletir sobre os da língua que caracterizam sua construção. E os recursos linguísticos utilizados corroboram, sem dúvida, para o seu significado.
O bom texto contempla (privilegia), ainda, os mais diferentes gêneros do discurso e o universo de interesse do leitor.
Como gêneros orais, citam-se: a discussão em grupo, o debate, a entrevista e a mesa-redonda.


Capítulo 4 - Fundamentos Teóricos da Literatura
Desenvolvido a partir do Módulo “Os Contos de Fadas” (Georgina Martins), e do Módulo “Fundamentos Teóricos” (Luiz Henrique da Costa).

4.1 - Discutindo Conceitos e Métodos
A expressão "Teoria da Literatura" remete a um conceito filosófico, ontológico do fazer poético.
Já como "Crítica Literária" entende-se o seu objeto específico.
E a "História da Literatura" comporta o fenômeno literário nos limites do contexto histórico.
Ora, mas então o que é literatura? Como se revela? Por que prisma ou prismas o interpretador, o destinatário a "transvê" (4 - Notas), afinal?
Entendo como literário um texto que possui a dimensão da literaridade, que se percebe pelas metáforas, as metonímias, a sonoridade peculiar (exposta em ritmos inconfundíveis). E pela narratividade, a descrição, os personagens, os mitos. E ainda pelos símbolos, ambiguidades e alegorias, que confluem superiormente para compor o panorama artístico da palavra, escrita ou falada.
Toda a exposição acima se justifica plenamente, na presente monografia, porque, como bem doutrina o crítico inglês Terry Eagleton:

"A literatura tem suas leis específicas, suas estruturas e mecanismos. A obra literária não é um veículo de ideias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental." (2005:4)

Os formalistas russos (albores do Século XX) operavam a abordagem científica do texto literário numa postura fria, analítica e técnica. Cultivavam um profundo desprezo pelo conteúdo psicológico e pelos aspectos meramente sentimentais da obra. Procuravam, porém, constituir uma ciência da literatura autônoma, explorando a literaridade.
O seu principal legado foi o aperfeiçoamento do método de leitura de textos e o relacionamento da crítica literária com a lingüística estrutural (que nasceu na mesma época). Por outro lado, pecaram pela excessiva concentração na forma, em prejuízo do conteúdo. Afastaram-se assim da história, da psicologia e da sociologia, por eles consideradas como matérias extraliterárias.

4.2 - Da Literatura e do Ódio Oficial
A verdadeira literatura é incômoda, ambígua, e brinca de reorganizar não só os blocos de palavras ou contextos, mas sim o mundo, anunciando-se e atuando como missão, céu e inferno. E atuando como um Anjo maldito ou bendito – conforme a perspectiva. Perigosamente independente, ela falsifica, exagera, distorce, exige, denuncia, expurga e exorcisa, não acatando os discursos tentadores que a realidade comum, cotidiana, "normal" lhe oferece. Para isso ocorrer, existe o compromisso dos escritores que a realizam como Arte, e não como filosofia, política, história, ideologias efêmeras... Para tanto, reveste-se ela de permanência, de altruísmo, de sentimento coletivo enfim.
Outrossim, ela avulta em capacidade de não só observar, mas atuar criticamente frente à História, nada perdoando dos acontecimentos imperdoáveis - trazendo tudo à acusante e queimante luz do verbo.
A Arte contemporânea (e inclui-se aí, lógico, a Literatura) constrói paradigmas elaborados ao longo do tempo, tempo esse amalgamado com a história do próprio sujeito.
A literatura, em sua atuação comovente, dolorosa, epifânica, catártica, redentora, fala a toda a Humanidade, servindo-se para essa enunciação de personagens individuais - seres dramáticos, figuras trágicas, espíritos patéticos, sentinelas avançadas da heróica legião de palavras sociais. O seu caráter é a transgressão ao stablishment, ao status quo vigente, ao momento tão caro aos tiranos, porque lhes favorece. Sua essência é a denúncia necessária, inequívoca, cristalina, intemerata e intimorata, tantas vezes isolada, luzinha única num caos de trevas políticas cruéis, puro pavor. Por isto a odiaram e intentaram abafá-la reis e reinos, déspotas e cortes, czares e impérios; Napoleão Bonaparte, Joseph Stalin, Antonio Salazar, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Getúlio Vargas, Fidel Castro, Juan Domingo Perón, as Ditaduras argentina, brasileira, chilena, espanhola, grega e uruguaia...
Daí a alternância dos conceitos de literatura, que têm variado de acordo com a História, com os eventos proeminentes de cada época. Todos quantos se sentem incomodados, denunciados ou açoitados por ela tentam silenciá-la, impondo-lhe ideologias e terrores, porquanto ela é, por natureza e destino, um condutor de convicções vivas. Alva neve vencedora dos afinais. (5 - Notas)
BARTHES (2004:62) aborda esse colossal enfrentamento, no artigo "Escrita e Revolução":

"Há certamente o fato de que a ideologia stalinista impõe o terror de toda problemática, mesmo e principalmente revolucionária: a escrita burguesa é julgada menos perigosa do que o seu próprio processo."

E isto, segundo ainda ele, "entre um proletariado excluído de toda cultura e uma intelligentsia que já começava a questionar a própria Literatura..." (p. 59)

A Literatura sobreexiste, por conseguinte, como movimento intelectual da sociedade, como resultado de tensões entre ficção e realidade e como construção ideológica.
No Brasil, eis alguns mártires máximos: Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Gregório de Matos Guerra, Monteiro Lobato e Padre Antônio Vieira.
A tensão da literatura provoca a arte literária, isto é, a escrita artística, com intenções ou fins estéticos. Podemos analisar o conceito de Literatura conforme os valores que foram construídos ao longo dos tempos, já que este termo atravessa, impávido, todas as proposições teóricas.
A literatura legítima impõe obstáculos, simplesmente. Que nos fazem sentir, pensar, tremer, recuar, avançar, progredir, evoluir enfim até homens. Joycemente. Travessia.

4.3 - Do adjetivo "infantil"
No início, as produções não se destinavam originalmente às crianças.
A literatura infantil não é algo separado ou menor que a Literatura. Esse adjetivo subentende escritores e um público específicos. Não há, portanto, relação entre o leitor e o leitor (não existe criança escrevendo para criança).
A literatura infantil acaba às vezes ocupando, ainda, uma função didática, quase vazia de conceito estético. Lamentável isto, pois sua função deveria conservar-se lúdica, primando pela diversão e distração das crianças.

4.4 - Do Maravilhoso
A produção infanto-juvenil hodierna continua ostentando elementos de magia, de deslumbramento, em histórias misteriosas e emocionantes; é feita por autores (consagrados ou não) talentosos; aborda assuntos da atualidade - televisão, tecnologia, informática e internet...
Listei alguns critérios de seleção preferidos (ou mais utilizados): adequação à idade, aventura, ecologia e meio-ambiente, família, ilustrações de qualidade, temas não polêmicos...
E como temas que recebem poucas indicações, eis: ficção científica, mitologia, morte, policial, sexualidade e violência.
Como temas impróprios: drogas e religião.

Maravilhoso é tudo aquilo que não pode ser explicado pela racionalidade. Cinderela, A Bela Adormecida e Pinóquio exemplificam contos que possuem em comum esse elemento, garantido, sublimado pela presença do fantástico.
As narrativas mágicas se prestam a diversas funções, como o afastamento da realidade, o descortino exato do fato, além das sutilezas impostas.
Eis alguns dos seus objetivos:
- evasão da realidade;
- crítica social;
- apropriação daquilo que não se pode adquirir no plano real.
O maravilhoso serve de contrapeso à banalidade, à regularidade. Configura uma inversão do mundo, ou da visão cômoda que se tem dele. Por isso ele não pode conviver com o cotidiano. Os contos de fadas transportam a fantasia, que se concretiza pelo estranhamento, o insólito, o espantoso e o sobrenatural.
Bastantes histórias, como Sheerazade, não foram em princípio escritas para crianças. As crianças que as descobriram.

4.5 – Da Atemporalidade Semântica
O conto maravilhoso não se prende à temporalidade: em Chapeuzinho Vermelho, por exemplo, 'bolo e manteiga' são 'bolo e manteiga', em qualquer época, não podendo, sem a perda de suas características peculiares, serem outra coisa, como iogurte e biscoito. Sem apelos consumistas. É que, devido à tradição, os traços estilizados do conto maravilhoso já se encontram arraigados nos corações e mentes.
Da mesma forma, no conto de Marina, o duneiro não será jamais um surfista que segue uma majestosa onda, nem um inquilino que não se muda para outro conjunto de apartamentos, por sentir seu coração perdido naquele em que mora...
E, por coerência, seria inviável o Brasil como ambiente (espaço de ficção) do seu conto, que perderia muito em força mística.
A lealdade/fidelidade a uma montanha única de vento e areia, em contraposição a milhares de outras, constituía a filosofia de vida do duneiro, para quem tal montanha simbolizava sua família, comunidade, cidade e região.


Capítulo 5 – Conclusões
A parte final deste trabalho, ao dar conta dos conceitos operacionais nele desenvolvidos, também põe à mostra a alquimia literária, a ambivalência, a intertextualidade, a polifonia, os aspectos enfim de uma polissemia única, premiável em nossas almas por infinitas leituras.
Indo além de diferentes tendências e discursos críticos, válidos todavia desnecessários, a obra de Marina Colasanti problematiza e soluciona e concede vitórias não apenas a um exército de personagens valentes, mas a todo o gênero humano. Palavras feitas de gente.
Essencialmente literários, esses seres cristalizados em vocábulos seminus de tão autênticos ajudam a nos despir das veleidades diárias, conduzindo-nos após, humildes e encantados, já vestidos de apenas puros sonhos, à gloriosa festa da Vida.
Numa perspectiva global, sua obra aponta para o maravilhoso, envolvendo a metamorfose lírica da palavra honrada enquanto palavra, simplesmente. Enquanto Oriente.
"E mais não se lhe pedirá!" --- para citar Antonio Houaiss, em artigo sobre o célebre "Ulisses", de James Joyce, por ele magistralmente traduzido.


Referências bibliográficas
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--- 23 histórias de um viajante. Global Editora, SP, 2005.
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---- No olho da rua --- historinhas quase tristes. Ática, SP, 2003.
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--- O Sofá Estampado. José Olympio, RJ, 1988.
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6.2 - Teoria:
BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. Martins Fontes, SP, 2004.
BENTES, Anna Christina. Linguagem – Práticas de Leitura e Escrita (vol. 2). SP, Global Editora, 2004.
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Paz e Terra, RJ, 1998.
CADERMATORI, Ligia. O que é literatura infantil. Brasiliense, SP, 1986.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Companhia das Letras, SP, 1990.
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COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. EDUSP, SP, 1995.
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Graal, SP, 1986.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Martins Fontes, SP, 2005.
FERREIRA, Aurélio B.H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Ed. Nova Fronteira, RJ, 1986.
FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. Editora Contexto, SP, 2008.
GERALDI, João W. (Org.). O texto na sala de aula -- leitura e produção. Ática, SP, 1997.
KOCH, Ingedore. Texto e Coerência. Cortez Editora, SP, 2008.
--- A Coesão Textual. Editora Contexto, SP, 2007.
--- A Coerência Textual. Ed. Contexto, SP, 2007.
--- Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes temas. Martins Fontes, SP, 2006.
LAJOLO, Marisa. Literatura infantil brasileira. Ática, SP, 1986.
LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história & estórias. Ática, SP, 1984.
LEITE, Lígia Chiappini. O foco narrativo. SP, Ática, 1985.
MUSSALIM, Fernanda. Linguagem – Práticas de Leitura e Escrita (vol. 1). SP, Global Editora, 2004.
PAULIUKONIS, Maria A.L. e SANTOS, Leonor Werneck (Orgs.). Estratégias de leitura: texto e ensino. Lucerna, RJ, 2006.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. RJ, Nova Fronteira, 1982.
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Martins Fontes, SP, 1997.
SANTOS, Leonor Werneck dos. Articulação Textual na Literatura Infantil e Juvenil. Apresentação da Profª Drª Ingedore Koch. Editora Lucerna, RJ, 2003.
TERRA, Ernani e NICOLA, José de. Português – Volume único para o ensino médio. Scipione, SP, 2006.
TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1979 (Col. Debates, 14).
--- Introdução à literatura fantástica. SP, Perspectiva, 1975.

6.3 - Revistas:
a) Discutindo Literatura Especial (“Literatura In-fantil e Juvenil”).
Ano I, n° 3. Escala Educacional, SP, 2008.
b) Biblioteca EntreLivros (“Para entender o Mundo Árabe” – 1001 Noites, Alcorão e outros). Ano I, n° 3. Duetto Editorial, SP, 2007.
c) Biblioteca EntreLivros (“Lygia Fagundes Telles” – e outros assuntos). Ano III, n° 39. Duetto, SP, 2007.
d) Revista de Língua Portuguesa (“Clarice Lispec-tor” – e outros assuntos). Articulistas: Ingedore Koch, José Luiz Fiorin, Regina Zilberman etc. Ano II, n° 19. Editora Segmento, SP, 2007.
e) Rev. Língua Port. (“Lygia F. Telles” – e outros assuntos). Art.: Márcio Cotrim, Beth Brait, Aldo Biz-zocchi etc. ano II, n° 22, Segmento, SP, 2007.
f) Rev. Língua Port. (“Monteiro Lobato” – e outros assuntos). Art.: Sírio Possenti, José Luiz Fiorin, Beth Brait etc. Ano II, n° 27. Segmento, SP, 2007.
g) Rev. Língua Port. (“Ruth Rocha” – e outros as-suntos). Art.: Beth Brait, Braulio Tavares, José Luiz Fiorin, Sírio Possenti etc. ano III, n° 32. Segmento, SP, 2008.

6.4 - Artigos Diversos:
1 - Auto Lyra Teixeira (UFRJ):
"A Antiguidade e a Literatura Infantil"

2 - Cristiane Madanêlo de Oliveira(UFRJ):
"Estudo das diversas modalidades de textos infantis"
"A Importância do Maravilhoso na Literatura Infantil"
"Afinal, o que é Literatura Infantil?"
Fonte: www.graudez.com.br
Acesso: 27/12/2008.

2 - Leonor Werneck dos Santos (UFRJ):
"Homenagem a Ingedore G. Villaça Koch"
"Monografia, Dissertação e Tese (Estrutura)"
Fonte: www.filologia.org.br
Acesso: 21/01/2009.

3 - Luiz Antonio Marcuschi (Unicamp):
"Exercícios de compreensão ou copiação nos manuais de ensino da língua?"

4 - Regina Souza Gomes (UFRJ):
"A Cena Escolar Brasileira"
"O texto verbo-visual da literatura infantil e o ensino da leitura"

6.5 – Outras mídias:
GENS, Rosa e CRUZ, Shirley da (Orgs.). “Lendas urbanas e outros textos de arrepiar”. DVD, UFRJ, 2007.

6.7 – Notas:
1 - Expressão presente no trabalho Atos (trans)locutivos no discurso da publicidade – faces e máscaras , de Rosane Santos Monnerat (in “Estratégias de leitura: texto e ensino, Pauliukonis & Santos, p. 131).
2 - Classificação proposta por Cilene et alii (idem, ibidem, p. 31) e por Mussalim (2004, p. 26 e 29).
3 - Omar Khayyam, poeta persa, autor dos Rubaiyat (Quartetos), traduzido para a maioria das línguas do mundo. No Brasil, sua melhor tradução é a de Otávio Tarquínio de Souza.
4 - Dois meses depois de eu ter criado essa forma verbal neológica, deparei-me surpreso com idêntico termo num dos livros da bibliografia, empregada (quanta honra para mim!) pelo honorável poeta Manuel de Barros, há uns vinte ou trinta anos.
5 - Apropriei-me subconscientemente de um hino católico, cujo título e refrão é: “Alvo, mais que a neve...”

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Iniciado em novembro de 2008.
Alterado 50 vezes até 09/10/2009.
Tempo gasto (apenas na releitura e reescrita do presente texto): 135 horas.

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Uma revelação final: detesto este conto.

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