domingo, 7 de fevereiro de 2010

Deus, Dostoiévski e as Vocações Perdidas

Há no Recanto escritores com intenções literárias belíssimas, mas cuja vocação é o púlpito. Profetas e não poetas, procuram nos arrebanhar, nos convencer pela elocução religiosa, pela inspirada e espontânea mensagem bíblica.
Trata-se, no entanto, de uma sinceridade emprestada de infinitos outros escritos, parábolas e sermões, todos padronizados, uniformes, "rezando pela mesma cartilha" dos seus. Repetem eles, enfim, todos os discursos afins, que falam da grandeza de Deus, da necessária humildade, das glórias da conversão...
Impetuosos pregadores:
Conhecemos bem esse discurso universal --- e o amamos, acreditai. Respeitamo-lo sabiamente, crêde. Só que daí a reconhecer em vossos textos a mínima excelência literária (transfigurada em beleza de imagens, originalidade e algumas qualidades imprescindíveis ao estilo, como: correção, coerência, clareza, coesão, concisão e elegância), esse pecado crítico não vamos cometer mesmo, jovens profetas.
Tentais colocar a Literatura a serviço de Deus, o que não funciona literariamente...

Existindo no poema uma mensagem não-poética, ela não prejudica, mas valoriza o texto, desde que não contenha elementos panfletários, moralistas ou doutrinários que se sobreponham à sua finalidade literária.
Em Literatura, Deus às vezes atrapalha. Refiro-me aos escritores que, pelos séculos, produziram poemas-breviários ou prosa sacrossanta e nada mais, construindo barreiras morais à livre inspiração, às águas barrentas da cristalina poesia. E exalto os Castro Alves, os Bocages, os Khayyáns, pelos versos que, ainda que a Deus dirigidos, nos tocaram igualmente.

Vós sem dúvida habitareis o Azul; não assim vossa literatura: esta marcha inexoravelmente rumo ao Nada negro.
Direis porém: “Ô Jô, há grandes escritores cuja obra se acha imersa em Deus, tal a freqüência e profundidade Dele em seus livros. Basta abrir a “Divina Comédia”, o “Fausto”, o “Crime e Castigo”... E então?!"
Concordo, jovens.

Refletirei, se me permitis, sobre um sonho que tive, envolvendo Deus, Dostoiévski e os homens. Esta criatura, pegando um dia seu Criador pela mão, fê-Lo percorrer seus romances e, ao fim, Lhe disse:
--- Eis Tua Obra, Senhor! Comenta-a, peço-Te!
(Fiodor estava na verdade acertando as contas, dando o troco, devolvendo ao Altíssimo tanto sofrimento desnecessário e sem nexo, seu e da gente russa.)
Constrangido e estupefato, o Senhor exclamou:
--- Mas estes seres independem de Mim para existirem! Que luz os ilumina? Que céu os acalenta? Que lógica os conduz?
Filho da Rússia: não concedi à Humanidade tanta alegria, arte, autonomia, beleza, bondade, ciência, consciência, delírio, humanidade, divindade, grandeza, ideologia, inocência, justiça, liberdade, paixão, paz, perdão, piedade, poder, poesia, prazer, razão, redenção, renúncia, saudade, sofrimento, solidão, sonho, ternura, transcendência, utopia --- tantos "deslimites" enfim!, pois assim os tornaria deuses!
E ainda: que feios defeitos Eu vejo, que não lhes coloquei?
--- Perdão, Senhor, há um equívoco.
--- Sim, Dost?
--- Esta não é a Humanidade, mas a minha projeção dela. Tais entes, que animei, saíram de Ti. Manipulei-os, simplesmente.
--- Mas Minha intenção era tão pura! Como a desvirtuaram tanto?
--- É que lhes deste também o livre-arbítrio. Descobriram que podiam agrupar-se em hordas de cossacos, de mujiques, deixar suas aldeias longínquas, atravessar as estepes do ressentimento, da ambição, da crueldade, do pecado, do orgulho, da perfídia, da vaidade, invadindo desordenadamente a metrópole das nossas almas...
--- Pois bem, ordeno-lhe que destrua a sua insuportável obra-de-luz!
--- Impossível, Senhor, porque ela está ou estará em todos os lares da Terra, até o Fim dos Tempos. Só o Senhor pode fazê-lo. E sei que não a destruirás, pois amas os justos e os sofredores. És, numa palavra, bom.
--- Bom... A propósito, Dost: as suas asas? A sua ausência do Paraíso?
--- Grande Sábio, claro que conheces as respostas, até das perguntas jamais formuladas...
As asas emprestei-as ao povo russo, que entrou em mais um século de tribulações (dialogo contigo em julho de 2007).
Já a minha permanência aqui se dá para interceder de perto pela nossa gente pobre e os humilhados e ofendidos; para apagar da memória coletiva as recordações das casas dos mortos, para manter intactas as memórias do subsolo, dos homens subterrâneos que nos descobrimos; para exorcizar os involuntários demônios, para exigir exemplares castigos aos múltiplos crimes, para purificar e unir nossos grotescos irmãos...
Meu Deus: minha vida foi uma só oração! Deixa-me estar com meu povo. Errei? Sim, e muito. Porém todos --- vivos e mortos --- já me perdoaram. Como a todos perdoei.
--- Perdoou até aquele canalha do czar?!
--- Até o magnífico Nicolau I, agora pó e em breve nada. Aliás, tenho um pedido.
--- Diga, fiel servo meu.
--- Falaste acima em generosidade. Pois bem: suplico-Te o perdão universal.


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Voltando ao chão, apoiamo-nos em um comentário sobre Fiodor:
Achando-se portador de revelações sobrenaturais, ele tenta nos catequizar com profecias místicas sobre o pecado original, a idéia de que estamos sempre em dívida para com Deus, urgindo a expiação das culpas, visando à salvação... Seus romances são povoados de anti-heróis, párias, estudantes, burocratas, oficiais, nobres, corruptos, devassos, iluminados... --- todos repletos de desespero existencial e ausência de perspectivas, tropeçando em planos diabólicos e levantando-se em arrependimentos angelicais.
Sugerimos aos leitores a dignidade de abrir as Escrivaninhas desses honoráveis oradores e conferirem, checarem, pesarem os fatos, antes de se apartarem de nós.
Fechamos este ensaio dirigindo-nos aos pregadores no início mencionados:
Vossos poemas, imperfeitos em conteúdo e forma, são no entanto hiper-sinceros, confessionais, triunfantes, sinfônicos.
Tenho infelizmente plena consciência de que vossa literatura não prevalecerá perante os séculos. Vossa fé é meritória, louvável, sublime; vossos escritos, todavia, pecam por miríades de erros gramaticais e fatigantes repetições de conteúdos alheios --- conteúdos de domínio religioso já público há décadas, séculos talvez.



Notas:
1 - Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou. Começa a escrever bem jovem, freqüenta círculos literários. Envolve-se em conspirações, é preso, condenado à morte, perdoado, porém exilado na Sibéria.
Retorna dez anos depois a São Petersburgo, casa-se com Maria Dmitrievna, escreve e publica vários romances, todos fundamentais ao gênero humano. Morre Maria, e ele se casa de novo, em 1867, com Ana Sníktina, que administra carinhosa e firmemente suas finanças, seus compromissos editoriais e ainda acompanha seu trabalho literário. Anos depois, Fiódor morre, aos sessenta anos.

2 - Uma palavra sobre a coleção abaixo, composta de quatro números:
1 - "Panorama da Literatura Inglesa - Cadernos Entrelivros nº 2, 100 págs., São Paulo, 2007.
2 - Literatura Russa";
3 - Literatura Americana; e
4 - Literatura Francesa.
Trata-se de uma publicação das mais sérias, envolvendo só profissionais competentíssimos, conhecedores completos, absolutos e apaixonados pelo assunto. Endereço para contatos, pedidos etc.: www.lojaduetto.com.br

3 - Algumas obras-primas dostoievskianas (traduções direto do idioma russo):
- Recordações da casa dos mortos (Nova Alexandria, 322 págs., trad. Klara Gourianova, R$ 49)
- Humilhados e ofendidos (Nova Alexandria, 322 págs., trad. Klara Gourianova, R$ 49)
- Memórias do subsolo (Editora 34, 148 págs., trad. Boris Schnaiderman, R$ 29):
- Os demônios (Ed. 34, 704 págs., trad. Paulo Bezerra, R$ 65)
- Crime e castigo (Ed. 34, 568 págs., trad. Paulo Bezerra, R$ 59)
- O idiota (Ed. 34, 672 págs., trad. Paulo Bezerra, R$ 65)

4 - Alguns testemunhos recentes sobre o Governo bolcheviche:
a) (...)
“E uma quantidade de mortes de denunciantes russos --- mais recentemente a morte da jornalista Anna Politkovskaya em Moscou, bem como o envenenamento do ex-espião Alexander Litvinenko em Londres --- mostra que a história soviética passada não está totalmente enterrada.” (Resenha de Liesl Schiillinger)
Do livro Casa de Encontros, de Martin Amis, trad. Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 240, págs., R$ 39,50. O autor, ensaísta, contista e romancista, nasceu em 1949 em Oxford, Inglaterra.
Fonte: Revista Entrelivros nº 28, agosto de 2007, pág. 72.

b) Manchete d' O Globo: “Governo Putin interna opositora em hospício”
Larissa Arap, 48 anos, ativista russa da Frente Cívica Unida (FCU), foi obrigada pela polícia a entrar numa ambulância, dia 05 de julho, levando-a à força para um hospital psiquátrico, onde ficou internada sob escolta armada.
“Um ato de pura vingança”, denunciou ontem Yelena Vasiliyeva, chefe regional da FCU.
Seu crime: ter criticado, num artigo, práticas violentas no tratamento de doentes mentais, denunciando maus-tratos em clínicas psiquiátricas russas.
Os médicos responsáveis, usando um método de coerção típico da KGB soviética, injetaram drogas psicotrópicas em Larissa contra sua vontade. Em protesto, ela iniciou uma greve de fome que só interrompeu no último sábado, ao receber autorização para falar por telefone com sua filha.
A polícia não quis comentar a denúncia. A clínica negou tudo. O diretor do hospital-fantasma fugiu. Os telefones lá agora tocam para ninguém. ( Jornal brasileiro O Globo, 31.07.2007)

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