domingo, 7 de fevereiro de 2010

O sono da bailarina (conto), de Lu Cavichioli (texto integral)

Era impossível não ouvir os gritos. Ecoavam por todo o casarão.

Rapidamente, calcei os chinelos tropeçando no tapete, e logo que saí do quarto, vi o tumulto.
Enquanto papai falava nervosamente ao telefone, meus tios corriam meio aturdidos. Mamãe chorava na beira da escada, e Tim uivava nos fundos da casa.
Todas as luzes acesas, e ao longe eu podia ouvir o som de uma sirene aproximando-se... seria um assalto?
Tia Sue tentava acalmar seu bebê, enquanto Lia, minha irmã, agarrada em mamãe soluçava baixinho."
Naquela mesma semana, estávamos ansiosos e transbordando em alegrias.
Nem o inverno sombrio e carrancudo poderia cobrir de névoas nosso contentamento.
Receberíamos na cidade a Companhia Russa de Balé, onde teríamos a brilhante apresentação de Klaus Stöcler, Nureyeva Rakhmaninov e o "Balé Encantos Sonoros", oriundos de São Petersburgo.
Levaríamos vovó, afinal ela fora uma grande bailarina com muito glamour e pompa em sua época, com grande destaque no Teatro Municipal.
Contamos a ela pela manhã quando nos preparávamos para tomar o desjejum.
Naquele sábado a garoa e o vento faziam um bailado invernal, deixando o céu agasalhado em nuvens.
Porém, em nossa sala de almoço tomávamos o café da manhã contando as novidades para vovó.
Tim meio ansioso insistia em arranhar a porta dos fundos, emitindo um ganido irritante, numa tentativa inútil de lembrar alguém de seu passeio matinal.
Entretanto, nós estávamos ouvindo as histórias de sapatilhas que vovó nos contava.
Eu a olhava atentamente, detendo-me em cada ruga, em cada expressão.
E como era linda ainda. Tinha os cabelos presos no alto da cabeça, por uma fivela dourada em formato de borboleta, realçando o tom alvo misturados em nuances peroladas de cada fio, já ralinhos e frágeis. No olhar o mar, ora azul, ora mesclado de um verde em ardes de verão, onde as pálpebras das ondas tornam-se mansas, e na voz trazia a serenidade das noites frescas sob o luar.
Finalmente chegara a noite do tão esperado balé.
Com toda baulbúrdia peculiar de uma família grande, reunimos forças para chegar a tempo. Papai já tinha reservado as frisas, e logo nos acomodamos.
O teatro de alguma forma era o lugar mais lindo que eu havia entrado. Iluminado em todo seu esplendor ostentava as cortinas laterais em gomos aveludados, dando impressão de serem tingidos do mais nobre vinho, tal era a nuance bordô que ofuscava meus olhos.
Os camarotes estavam repletos de frangotes engomados, mocinhas fúteis e velhos carrancudos, e todos se mexiam freneticamente como se fossem marionetes, e era divertido ver as elegantes senhoras com o binóculo em punho.
Logo abaixo na platéia, ouvia-se um burburinho leve misturado ao som de violinos que entravam discretos pelos auto-falantes.
De repente as luzes foram se apagando, o som dos violinos morrendo e, finalmente o silêncio abria as portas para o início do espetáculo. Focos de luzes coloridos passeavam no palco, até que as cortinas começaram a subir e meu coração tamborilando fazia minhas mãos transpirar.
Com o auxílio do binóculo, meus olhos calçaram sapatilhas e deram os primeiros passos junto com as bailarinas.
- Que beleza!! - Exclamou vovó.
As bailarinas entravam uma a uma, seus corpos eram pétalas rosadas, e com movimentos leves compunham um jardim humano, onde o coração começava a pulsar, com a entrada de Klaus e Nureyeva.
A emoção era uma brisa, que invadia cada rosto, cada olhar.
Delicadamente segurei a mão de minha avó, olhei rapidamente em seus olhos, estavam povoados de estrelas.
Deixei-me levar pela música, pelos passos e gestos sutis, que saíam daquele palco.
Assim que tudo terminou, fizemos questão de tirar fotos com os bailarinos, colocando vovó entre eles.
Por mim, ficaria a vida toda ali, encantada... pois era a primeira vez que contemplava uma companhia de balé. E diga-se de passagem "QUE PRIMEIRA VEZ"!I!!
Ao chegarmos em casa, por volta da meia noite, minha mãe subiu rapidamente para ver Lia e Xande, meu priminho. Felizmente dormiam tranqüilos.
Joguei-me no sofá, olhando para o teto, sonhando com Klaus... que beleza de homem! Alto, louro, mesmo pairando em meus devaneios vi minha vó reunir os três filhos, e num tom de agradecimento ela dizia:
- Filhos queridos, não houve presente mais delicado e cheio de amor que eu tenha ganhado em toda minha vida, do que esta surpresa infinitamente doce que fizeram esta noite. Posso viver ainda mais 10 anos, entretanto não conseguiria ser-lhes grata.
Terminada ai palavras, ela beijou a cada um, sorriu para mim seguindo para o quarto.
Quando a lua já se fazia alta e melancólica acordei num sobressalto.
Sentei-me na cama meio zonza enquanto ouvia passos no corredor, e por mais que o tempo passe, que as rugas tracem seu caminho em meu rosto e minha alma possa enfim aquietar-se, nunca poderei esquecer aquela madrugada sombria.
Vovó foi encontrada morta sentada em sua poltrona. Nas mãos, segurava um par de sapatilhas e no rosto trazia o brilho dos grandes espetáculos. Porque naquela noite ela dançaria sobre as nuvens e dormiria o sono rosado de uma bailarina.

Fim

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